“Se um homem for feito prisioneiro de guerra e não houver quem sustente sua esposa, ela deverá ir para outra casa, e a mulher estará isenta de toda e qualquer culpa.”
Código de Hammurabi, 1700 A.C.
Descia eu a Fontes Pereira de Melo na quinta passada. Uma cacimba espessa, anunciando chuva, convidava a um passo apressado. Em sentido contrário, uma senhora de idade, nitidamente nos setenta, subia a calçada. Ao cruzarmo-nos, abordou-me, numa voz sumida: “Desculpe, o senhor não se importava…” Estava bem vestida e arranjada, e por isso naquele segundo esperei um “…de me dizer onde fica a rua tal” ou um “… de me dizer onde se apanha o autocarro xis” ou meramente que me perguntasse as horas.
Mas não. Baixando os olhos, continuou, num tom que quase não se ouvia: “… preciso de ir à farmácia e não tenho dinheiro.” Quando nos voltámos a fitar, enquanto eu lhe dava uma moeda para a mão, reparei na sua expressão mista de vergonha e alívio. Murmurou um agradecimento e eu segui, ou melhor, escapuli-me, desgostoso. Tudo ocorreu em segundos, de forma discreta. Os fatos e gravata e os “tailleurs” que nos cruzavam nem deram por nada, no seu afã de eficiência satisfeita.
E eu, prosseguindo o meu caminho, perguntei a mim mesmo: “Que merda é que nós andamos a fazer?” Já não era a primeira, nem a segunda vez que encontrava esta mendicidade envergonhada, de mulheres e homens sós no fim de uma vida honesta, a quem a doença e o abandono tornaram os meses compridos demais. Onde andamos nós a falhar tão redondamente enquanto sociedade, para que esta mulher, esta avó de todos nós, se visse reduzida a palmilhar ruas à chuva, pedindo em voz baixa, empurrada pela necessidade, toldada pela vergonha do que pensa ser seu fracasso, quando o fracasso é nosso, total e miseravelmente nosso?
A grandeza de uma sociedade mede-se pela justiça com que trata os seus mais fracos. Deveríamos sentir tanto constrangimento em ver um velho a pedir como o que a maioria de nós desenvolveu em relação à mendicidade infantil. Há trinta a quarenta anos atrás, ainda me recordo de muita gente em pose de boa gente achar um facto da vida, vagamente lamentável mas certamente natural, que as crianças de famílias pobres pedissem na rua. Algumas até lhes chamavam umas malandras. Hoje em dia, se alguém assim pensar provavelmente terá vergonha na cara suficiente para o manter para si. E esta evolução do pensamento colectivo acabou por servir para, pelo menos, convencer a sociedade de que é sua obrigação gastar recursos a proteger as crianças.
Falta completar – ou reencontrar – um percurso mental semelhante para os velhos. Que deve começar por aceitar a velhice como um facto da vida (no fundo, todos esperamos lá chegar) e não dar uma carga negativa ao vocábulo. Esqueçam terceiras idades, idosos, faixas etárias avançadas ou populações seniores. Sénior é a equipa do Sporting e não anda a jogar um cartucho. Velhos! Com todo o respeito e veneração que a palavra nos merece.
Tudo isto se passou no dia em que um banco privado decidiu atribuir ao seu recém-despachado presidente do conselho de administração, quadragenário, uma pensão vitalícia, módica, próxima dos cem salários mínimos mensais. Provavelmente para que não o tivéssemos que ver, na Baixa, de fato cinzento e mão esticada, a implorar a caridade alheia, para um café ou um mata-ratos. O que seria incómodo.
Tal facto gerou comentário e um certo mal-estar até nos editorialistas mais acerrimamente pretenso-liberais. Espanta-me que não tenha causado maior revolta no grande público. Provavelmente as pessoas pensam que só se devem indignar com os desplantes públicos e não com os desplantes privados. Não é assim. Quer por razões éticas, que o Hammurabi, citado em epígrafe, já tinha percebido há quatro mil anos, quer por razões práticas, que só agora os teóricos da liberal economia começam a vislumbrar, tão notórios diferenciais de riqueza não dão saúde a ninguém. A cabeça da Maria Antonieta que o diga.
5 comentários:
Carlinhos, percebo e empatizo com a tua indignação. A minha ignorância política não me permite acrescentar mais nada...
Quando perdemos a empatia para com o ser humano anónimo que sofre, quando o nosso alheamento é total para além do grupo restrito das poucas pessoas que nos damos no dia à dia, então estamos a deixar não só de ser humanos, como a deixar que outros decidam por nós, nos digam o que fazer e portanto sujeitando-nos a essas decisões, quer gostemos delas quer não.
Uma sociedade a tal ponto cega e que torna possível que surjam grupos de indivíduos que ponham o bem-estar de crustáceos acima do bem-estar de seres humanos anónimos é uma sociedade que caminha rapidamente para o proverbial buraco negro.
Porque não estou isento de culpas, sinto-me obviamente desconfortável e de consciência pesada ao ler o teu post, meu caro Carlos, no entanto penso que também era essa a tua intenção.
Olhe ó xáxavore, desculpe lá... mas que raio é que "perder a empatia para com o ser humano anónimo" tem a ver com "deixar que outros decidam por nós, blá, blá"?
Um pouquitito cu/calças ou é impressão minha?
Referia-me a que se formos indiferentes ao sofrimento dos outros (perder a empatia) implica sermos indiferentes a como a sociedade e o Estado tratam desses "outros".
Logo se nos estamos nas tintas para como o Estado e a sociedade tratam os outros, somos indiferentes às políticas (e à Política) que conduzem directamente ou indirectamente ao mau tratamento destes "outros".
Como nunca nos passa pela cabeça que um dia nós poderemos ser estes "outros", deixamos que decidam por nós (visto sermos indiferentes) o que fazer ou o que não fazer.
Faz-me lembrar (e desculpem o exagero da comparação) de um poema sobre a inacção dos alemães durante a ascensão do Nazismo:
"Na Alemanha, eles primeiro levaram os Comunistas, e eu não disse nada porque não era Comunista.
E depois levaram os Sindicalistas, e eu não disse nada porque não era sindicalista.
E depois levaram os Judeus, e eu não disse nada porque não era Judeu.
E depois... eles levaram-me, e nessa altura já não havia sobrado ninguém para falar."
Pois... you've got a point there...
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