quinta-feira, dezembro 27, 2007

Portugal dos pequeninos

A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando.
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.

Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.


Fernando Pessoa , in “Mensagem”


Nós, os portugueses, somos moldados desde pequenos num complexo de inferioridade terrível. Bem lá no fundo, sentimo-nos anões deste mundo, vemo-nos como um “Lilliput” à beira-mar plantado, cercado de gente que ganha campeonatos europeus, prémios Nobel e ordenados mais vultuosos.

Por isso, desde que me lembro, sempre nos vi a exacerbar qualquer sucesso internacional, por ridículo que fosse, como se de uma Aljubarrota se tratasse. Recordo hoje com um sorriso (amarelo) as figuras que em criança fazia a vibrar com as vitórias de Portugal em hóquei em patins sobre a Guatemala e afins, mais de quarenta a zero. Seguia liturgicamente estas proezas nas noites de Julho, de orelha colada ao transístor, com o comentador a atropelar-se a si próprio nos gritos de golo, urrados durante minutos. Quarenta a zero – que pátrio orgulho! Teve que ser o meu pai a pôr as coisas em perspectiva, lembrando-me que os guatemaltecos mal sabiam patinar e só lá estavam para que o campeonato, supostamente mundial, contasse com uns centro-americanos. E que o hóquei patinado, sendo uma modalidade apenas praticada num país (Portugal), numa cidade (Barcelona) e numa rua de San Juan na Argentina, não valia, portanto, a ponta de um papo-seco.



Havia quem fizesse piores figuras. Certa vez, um apresentador de telejornal relatou-nos, com entusiasmado ar de proeza, que Portugal conseguira um terceiro lugar no torneio triangular de atletismo Portugal/Espanha/Marrocos. Claro! Um terceiro lugar sempre soa melhor que último. Ainda bem que o conseguimos.

Quando o Futre foi jogar, nos anos oitenta, para o Atlético Madrid, sendo pioneiro no que constitui hoje um dos nossos principais produtos de exportação – artistas da bola – os nossos noticiários passaram a apresentar periodicamente uns “flashes” dos jogos dessa equipa, permitindo aos comentadores novas e até aí inimagináveis façanhas de exagero lusitano. Se o Futre marcava, o Atlético tinha ganho graças a um golo de Futre, mesmo que o resultado tivesse sido de cinco a zero. Se o Futre intervinha numa jogada bem sucedida, era a classe de Futre que estava na origem do golo: o caramelo que lá tinha ido cabecear no meio dos defesas, expondo os dentes à cotovelada mas metendo-a lá dentro, nem sequer era referido. Se o Futre tocara na bola três minutos antes de um golo, tratava-se de “um tento com a participação de Paulo Futre”.


Claro que optimismos tão patetas tinham que ter reversos de medalha, sob a forma de monumentais cacholas. E a nossa medalha até tinha mais coroas do que caras, numa geometria esotérica. Quanto tinha doze anos, assisti a altas horas da madrugada, num hotel do Carvoeiro, à final dos dez mil metros dos Jogos Olímpicos de Montréal. Todo o hotel estava na sala de têvê: empregados, clientes e penetras. Durante vinte e tal minutos, vibrámos com o nosso Carlos Lopes, cuja vitória, tal como a nossa confiança, se adensava a cada passada. Na última volta, porém, o finlandês Lasse Viren ligou os reactores, passou o nosso Lopes já entretido a voltar a meter os pulmões para dentro da caixa torácica e ganhou aí com uns bons cinquenta metros de avanço. Não me lembro, em toda a minha vida, de um silêncio tão sepulcral como o que então caiu, nem nos velórios menos concorridos. Nos dias seguintes, os jornais ventilavam rumores de que o Viren ganhara recorrendo a expedientes obscuros, no limite dos regulamentos e para lá de toda a ética desportiva. Falava-se de transfusões sanguíneas e oxigenação de glóbulos vermelhos. Oxigenação era o que o meu cérebro precisava, que me indignei a ler essas patranhas.

Consolámo-nos nessa altura com uma medalha de prata. Entretanto, as coisas foram piorando, porque os etíopes e os quenianos começaram vir às meias-dúzias e a limpar tudo o que eram maratonas e corta-matos. O orgulho nacional, na sua versão televisiva, logo encontrou solução para o problema: fulano tal, português, décimo terceiro na meia-maratona de Mangualde, foi o “melhor europeu” ou o “primeiro não-africano”. Como quem diz: à parte os pretos, que não contam, ganhámos. Que portento!


Vem-me tudo isto à lembrança agora que Lisboa está cheia de monumentais lonas com garrafais letras a dizer Portugal e brindando o povo com “retratos da Costa Oeste da Europa por Nick Knight”. Uma nova campanha, destinada a promover o bom nome português como costa ocidental da Europa, não sei se por referência a Fernando Pessoa, se como colagem à West Coast californiana.

Ao que é público, a dita campanha, anunciada debaixo das luzes televisivas com ministerial presença, pompa e circunstância, conta com um orçamento de três milhões de euros, trezentos mil dos quais para pagar ao Nick, que ainda se deve estar a rir a esta hora. Aliás, o ministro, inquirido por um jornalista mais perspicaz sobre a razão de pagar com dinheiros públicos trezentas mil broas a um fotógrafo inglês, revelou presença de espírito e sentido de Estado ao afirmar que não tinha nada a ver com o assunto, que perguntassem ao responsável pela campanha. Afinal, não era ele o responsável. É só um detalhe, mas fiquei sem perceber o que é que ele lá andava a fazer.

Continuando, não sei bem que público é o alvo desta campanha, se interno, se externo. Li que em parte será externo, em "revistas de prestígio", mas não deve ser campanha muito massiva, porque descontando o dinheiro para pagar por cá as lonas e os anúncios de revista, mais o cacau do Nick Cavaleiro e a festarola de lançamento, não há-de sobrar muito. Resta a hipótese, que vou explorar de seguida, disto tudo ser para nos fazer a nós, portugueses, festas no ego.

E de que nos devemos orgulhar, de acordo com a campanha? De alguns atletas, um treinador de futebol, uma fadista, um arquitecto, uma artista plástica, uma cientista. Gente certamente notável, que merece toda a nossa admiração, que conseguiu ser excelente entre os melhores do mundo nas sua área de actividade. Feitos económicos, como a maior central solar do mundo ou a presença na crescente indústria da energia eólica, efectivamente louváveis num país com uma economia frágil. Mas que não chegam para que Portugal seja o último dos exemplos. São, meramente, os Futres e os hóqueis dos nossos dias.

Se a campanha se destinasse a promover lá fora a marca Portugal, para atrair turistas e investidores, poderia ser útil, se fosse pensada e desenvolvida com esse propósito. Mas, sendo para dentro, que vende esta campanha aos portugueses? O orgulho de sermos compatriotas daquelas pessoas? Será que os etíopes também acham que vivem no paraíso na terra só porque o Haile Gebrselassie tem o recorde do mundo da maratona?

Cresceremos como país se nos dedicarmos menos à vanglória das nossas excelências e mais à correcção dos nossos defeitos. Foi aliás isso que tiveram que fazer muitos dos nomes que aparecem nesta campanha. Quando o Cristiano Ronaldo chegou ao Manchester, o Ferguson, que come vedetas ao pequeno-almoço, não lhe gabou certamente o jeitinho para dar toques sem deixar cair a bola. Pô-lo no ginásio a fazer músculo, deixou-o no banco enquanto ele não pôs o génio ao serviço da equipa, transformou-o num capitão. Corrigindo o que estava errado, preenchendo o que não existia, em três anos fez dele um dos melhores do mundo.

Com os países passa-se o mesmo. Mais importante do que gastar bom dinheiro a propagandear os circunstanciais sucessos de A ou de B, muitos deles só possíveis por que A e B trabalham no estrangeiro onde lhes dão condições de trabalho e de exigência, interessa corrigir as nossas lacunas, na educação, na saúde, na justiça, na atitude que como um todo temos perante a vida. Se os portugueses sentirem que os seus governos dão o litro nessa tarefa, terão algumas razões para estar satisfeitos. Se as coisas forem melhorando nesses domínios, terão motivos para alguma vaidade.

Por tudo isto, esta campanha acaba por ser, ao mesmo tempo, um desperdício de recursos e uma parolada. Uma fachada para pendurar nas fachadas. Um regozijo estéril, pago por todos nós e promovido por quem deveria investir-se em actividades mais úteis para o país.

4 comentários:

Cristina Rodo disse...

Numa corrida entre o meu sobrinho e duas primas direitas:
- "Eu sou o primeiro, eu sou o primeiro" diz ele ao "cortar a meta"...
- "Eu sou a segunda, eu sou a segunda..." diz uma das primas.
- "Eu sou a última, eu sou a última!!!" diz a outra prima exactamente com o mesmo entusiasmo...

Também não sou apologista de gastar muito dinheiro nestas coisas...
Também acho que nos devemos dedicar à correcção dos nossos erros...
Mas hás de convir que uma massagem ao ego é também muito importante para que se possa avançar com energia positiva...

NunoF disse...

Se enaltecer desmesuradamente os pequenos feitos é sinal da nossa pequenês, confundir arrogância com orgulho é também um sintoma do mesmo problema.

Parece a história dos macacos, da escada e da mangueira de água gelada...

Aposto que se em vez do fotógrafo Nick Knight fosse, sei lá, a Paula Rego, a reacção de quem se sente incomodado teria sido outra.
Como o Nick Knight não é conhecido cá no burgo, 300,000 EUR é logo dinheiro desperdiçado.

Porquê? Como é que se sabe, meras semanas depois de lançada a campanha, o impacto que ela terá e o retorno que daí advém?

Haverá no nosso burgo tantos especialistas de publicidade, marketing e comunicação de bancada?

Pedir explicações é um direito, e mais que isso, um dever, mas deitar abaixo algo mesmo antes de ter começado só porque achamos que o nosso país devia estar era quietinho no seu cantinho e não se armar em carapau de corrida parece-me mais do que parvoíce, seria matar a esperança.

E quando morre a esperança da população no seu país, não há muito a fazer, o melhor é arrumarmos a trouxa, fechar a porta e sair de mansinho.

Cristina Rodo disse...

" Aposto que se em vez do fotógrafo Nick Knight fosse, sei lá, a Paula Rego...
......................
Haverá no nosso burgo tantos especialistas de publicidade, marketing e comunicação de bancada?"

Não, que disparate, é obviamente necessário ir buscar um cámone... como toda a gente sabe nós não fazemos nada que se aproveite... Please!
Nessa parte estou totalmente a favor do nosso Carlinhos, caraças se é para promover o país que se o faça com a prata da casa, não?

NunoF disse...

Nota: Escolhi a Paula Rego porque esta decidiu que não gostava de ser Portuguesa e pediu a nacionalidade britânica. Isso para mim desclassifica-a como Portuguesa.

:-)

O resto dos meus argumentos (e mais alguns) foram bem descritos aqui.