Prólogo
De convites em punho, cristalizados que nem fruta do bolo-rei pelo vento de Dezembro à beira-Tejo, fomos andando na procissão das almas, na direcção dos Santos Porteiros. Marchávamos sobre um tapete vermelho, ladeado de velas da loja do gato preto que, bruxuleando ao sabor da intempérie, ameaçavam a todo o momento pegar fogo ao meu sobretudo. Labaredas enormes! Passados finalmente os picas, vimo-nos atribuídos os lugares prái 1480 e 1482 da quarta fila, com perspectiva dimétrica sobre o palco.
Primeiro acto
Apagam-se as luzes. Sobe o pano. Outro pano, branco com traços coloridos, representando aves ao longe, em formação de picada. O técnico de luzes diverte-se a simular a parte final do “2001 – Odisseia no Espaço”, metralhando o dito trapo com fotões variados. Os altifalantes vão debitando a abertura, Opus 20. Sobe o segundo pano. Aparece um gajo de “collants” aos saltos, com uma coquilha de jogador de râguebi a tapar a melhor natureza e uns glúteos de profissional. É o príncipe Siegfried. Vai entrando mais malta pelos lados, simpaticamente nas pontas dos pés para não acordar a minha cara-metade, que já ronca no 1482. O público, desconhecedor de que a peça se divide em actos para se poder aplaudir no fim destes, bate palmas por tudo e por nada. Os artistas aproveitam para parar a cada dois passos, avançando o torso em pose de Nureyev do Beato, gerando mais palmaria.
O Siegfried faz anos e os reais paizinhos dão uma festarola. Os paizinhos também estão de “collants”, mas com um “outfit” melhorado e umas carapuças importadas directamente do Espaço 1999. De prenda pelo feliz dia, o Siegfried tem direito a uma besta para ir aos patos. A besta vai das mãos do rei para as da rainha, do príncipe, do amigalhaço do príncipe, de uma pequena que lá estava ao pé e acaba por dar a volta à Companhia Nacional de Bailado. De cada vez, dador e receptor apontam simultaneamente para o peito e para a arma, com as mãos em pose de “Ai fofa! Não me digas!” e uma carinha de “Olha que bela besta!”
“But, no free bestas in life!” Os paizinhos querem que o Siegfried aproveite o evento para escolher uma gajinha para o tal e coiso e continuar a linhagem, já que é herdeiro do trono. Apesar de se contarem em palco para cima de vinte delas – algumas com visíveis dotes de dona-de-casa – o rapaz não se entusiasma, lançando dúvidas sobre a sua seriedade. Rodopia, saltita, corre, pula e vai mas é à caça do cisne, experimentar a besta.
Segundo acto
O Siegfried assesta a arma a um bando de cisnes, de saiotes e fru-frus brancos, e prepara-se para trepanar uma meia-dúzia assim que aterrarem. Mas um dos cisnes aproxima-se e deixa-o espantado, estado que nos é representado por uns olhos esbugalhados que nem uma garoupa e várias torções rápidas do pescoço. Afinal o cisne é meio-mulher, meio-cisne. Perante a aberração, o príncipe, que acabara de rejeitar vinte boas de borla há dez minutos atrás, revela o seu lado “kinky” e apaixona-se, extravasando o seu sentimento com pulos que nem um cabrito-montês.
A mutante informa Siegfried que se chama Odete e que também é princesa de profissão. Calha bem. Ficou naquele triste estado por causa de um feiticeiro mau, com nome de comandante de uma coluna de “panzers”: Von Rothbart. Os pais dela choraram tanto, coitadinhos, que as suas lágrimas formaram o Lago dos Cisnes, só ultrapassado pelo Mar de Alvalade. Ouvido isto, o Siegfried, que é tosco e acredita no que as mulheres contam, apaixona-se ainda mais.
Entretanto aparece em palco, com fanfarra e fumarada, o dito Rothbart. Traja “collant” e jaquetão preto e capacete integral ou coisa parecida, numa inspiração Darth Vader. Siegfried faz-lhe um daqueles números de Marvila, só que na ponta dos pés: “anda cá que eu te desfaço”, “agarrem-me que eu dou cabo dele” e outras do género. Mas Odete agarra-o mesmo. Se Rothbart morrer, o feitiço nunca mais será quebrado e ainda faltam dois actos.
Intervalo
Romaria ao urinol. Pinguins servem cafezinhos de saco. Tenho dezassete chamadas não atendidas e seis mensagens de voz de uma mesma amiga, desesperada ao partir um dente com uma trinca num bacalhau mal demolhado, azar só explicável por outra maldição do Von Rothbart. Regresso à quarta fila, enquanto apago da memória (não da minha) aquela orgia de esse-eme-esses.
Terceiro Acto
O príncipe regressa ao baile, que ainda verga ao som do DJ Pyotr T. O feiticeiro também lá vai, disfarçado, mas eu topei-o logo. Leva a sua filha Odília, que ele transformou para ser igualzinha à Odete, com nome de costureira e tudo, só que vestida de preto em vez de branco. O Siegfried, que além de estúpido deve ser daltónico, ou então que está com a cabeça à roda de tanto voltear, baralha-se e anuncia ao “party” que está apanhado pela Odília. Quando se apercebe do erro, ao ver a Odete lixada a deslizar em “pas de deux” para trás de um cenário, já é tarde demais.
Quarto Acto
Siegfried regressa à floresta enquanto prepara um discurso do género “percebeste mal, era só uma amiga.” Encontra a Odete e dá-lhe a tanga. Dançam durante um quarto de hora. Levo uma cotovelada cúmplice da minha mais-que-tudo a avisar que agora sou eu que estou a passar pelas brasas.
Na austera versão original russa, os dois amantes afogavam-se no lago dos cisnes, num “sepuku” aquático, convencidos da invencibilidade da maldição do bruxo. Nesta mais latina adaptação, o amor vence e o Von Rothbart cai nos fundos dos infernos, aproveitando um alçapão ao fundo do palco de onde saem umas luzes avermelhadas e os restos da máquina de fumos. Os nossos heróis, agora livres, já podem receber a ovação final do público.
Epílogo.
O momento mais cultural da noite. Ceia volante oferecida pela organização. Ultrapasso o Siegfried em destreza e elasticidade, gerindo prato, copo de vinho e dois talheres, só com duas mãos e em pé. Isto sim, é “ballet”!
2 comentários:
LOLOLOLOLOLOLOLOLOL
Muito bom, muito bom... com um narrador assim ao meu lado até eu ia ao ballet...
Que pena o episódio dos SMS, deves ter perdido imenso tempo a lê-los todos no intervalo, não? Já nem deu para sacudir depois da mijadela...
LOLOLOLOLOLOLOLOLOLOL
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!!!
MARAVILHA!!!!!!! BOM DE MAIS!!!!
GRANDE CONTADOR DE HISTÓRIAS!
Bjs
Claudia
Enviar um comentário