sexta-feira, novembro 23, 2007

A vida eterna

Passados cinquenta anos
De mim
Que restará?

Uma fotografia esmaecendo numa prateleira
Com roupas de outra era
Numa felicidade passada
Decorando um “hall” de entrada
Entre um jarrão e uma salva
Com crianças a perguntar quem era

Talvez uma biblioteca,
Livros amarelecendo
Ocupando um recanto
Na casa de algum descendente
Que se lembrará que ainda existo
Quando diante de um livro surpreendente
Se admirar (Ele lia isto?)

Alguns genes, certamente
Aparecendo ocasionalmente
No desenho de um queixo
Ou no sorriso de um bisneto

Ao princípio, os mais velhos dirão
Sorri como o avô sorria
Mas chegará o dia
Em que os mais velhos partirão
E aí serei apenas sorriso e queixo
E, embora sendo, ninguém saberá que sou eu

terça-feira, novembro 20, 2007

O jornal do espanhol

No fim dos anos noventa, trabalhava na empresa em que eu trabalhava um colega espanhol, uma geração mais velho do que eu, que sempre representou para mim uma certa parte da Espanha. Bem-disposto, com uma costela marialva e algo fura-vidas, tinha no Real Madrid a principal paixão. Em política era “pêpista” – simpatizante do Partido Popular, anti-socialista, com um desprezo marcado pelos nacionalismos basco e catalão e, por arrasto, desconfiado dos próprios bascos e catalães. Também católico e monárquico, e lá no fundo saudoso do franquismo e da sua suposta ordem. Como muitos homens da sua geração, tivera familiares fuzilados durante a Guerra Civil, no seu caso pelos republicanos, o que explica em parte o seu modo de ver. Sempre simpatizei muito com ele, apesar das inúmeras turras profissionais que demos.

Todos os dias, este homem passava numa tabacaria antes do trabalho para comprar o diário madrileno ABC. O que é normal, porque o ABC pensava como este meu amigo: conservador, católico, monárquico, pêpista, anti-socialista, anti-regionalista e até anti-barcelonista nas páginas de futebol. Muitas vezes, passei no seu gabinete e folheei aquele grosso jornal, gordo de uma centena de folhas, pesado de inúmeros artigos de opinião.

Certo dia, o ABC do meu amigo tinha por primeira página, de alto a baixo, a fotografia de um homem velho, de melena branca. O título era “morreu Alberti”. Eu não sabia então quem era Rafael Alberti. Foi um dos grandes poetas espanhóis do século XX, e também jornalista republicano e militante comunista, exilado durante o franquismo.

Pois o ABC, diário conservador, católico, monárquico, anti-socialista e tudo o mais, dedicava – para além da primeira – as suas vinte e tal primeiras páginas à memória de um poeta comunista que morrera nesse dia! Pela simples razão que fora um dos melhores de Espanha. Nesse dia, recebi do ABC uma inesperada lição sobre nobreza de espírito. Na hora da morte, não interessava o que em vida o separara profundamente daqueles que, naquelas vinte e tal páginas, elogiaram postumamente a sua obra. O que importava, isso sim, era a poesia que deixava e que, sendo grande, fazia maior a Espanha.

Comparando com situações semelhantes em Portugal, onde maltratamos a nossa cultura e a nossa herança, onde deixamos passar em claro as efemérides que poderiam servir para festejar aqueles cujo génio é património de todos nós, onde somos suficientemente estúpidos ao ponto de dizer de fulano que até foi um bom poeta, mas que era comunista/homossexual/fascista/ou qualquer outro rótulo, a largura de perspectiva demonstrada pelo ABC surpreende. Dizia Oscar Wilde que não há livros morais ou imorais, só há livros bons e livros maus. No ABC e em Espanha, “lo tienen claro”, como eles lá dizem. Cá nem por isso.

Não consigo deixar de pensar que esta será uma das razões pelas quais a Espanha vai crescendo, enquanto nós vamos mirrando, alegretes e contentezitos.


Entretanto, li Alberti, o que muito agradeço ao ABC. Deixo aqui um poema para amostra, que poderia reflectir algumas das inquietações que sinto hoje em dia. Narra um género de preocupações e sentimentos que já não se usam e é por isso mesmo actualíssimo. Intitula-se “balada para los poetas andaluces de hoy”:

¿Qué cantan los poetas andaluces de ahora?
¿Qué miran los poetas andaluces de ahora?
¿Qué sienten los poetas andaluces de ahora?

Cantan con voz de hombre, ¿pero donde están los hombres?
Con ojos de hombre miran, ¿pero donde los hombres?
Con pecho de hombre sienten, ¿pero donde los hombres?

Cantan, y cuando cantan parece que están solos.
Miran, y cuando miran parece que están solos.
Sienten, y cuando sienten parecen que están solos.

¿Es que ya Andalucia se ha quedado sin nadie?
¿Es que acaso en los montes andaluces no hay nadie?
¿Qué en los mares y campos andaluces no hay nadie?

¿No habrá ya quien responda a la voz del poeta?
¿Quién mire al corazón sin muros del poeta?
¿Tantas cosas han muerto que no hay más que el poeta?

Cantad alto. Oireis que oyen otros oidos.
Mirad alto. Veréis que miran otros ojos.
Latid alto. Sabreis que palpita otra sangre.

No es más hondo el poeta en su oscuro subsuelo
encerrado. Su canto asciende a más profundo
cuando, abierto en el aire, ya es de todos los hombres.

quinta-feira, novembro 15, 2007

As juntas

Li no outro dia que o ministro das finanças, Teixeira dos Santos, contrariou o veredicto de uma junta médica que mandara apresentar-se ao trabalho uma senhora com uma doença degenerativa grave. A tal junta médica – ou, melhor dizendo, uma junta de médicos, provavelmente em roda livre e desorientada, sem o peso da canga e a resistência da lâmina do arado – declarara-a capacíssima de trabalhar, mau grado o detalhe menor de ela não conseguir andar ou ir à casa de banho sozinha.

Corre aí uma moda, nesses ajuntamentos de doutores que decidem, soberbos, sobre a vida alheia, de mandar trabalhar paralíticos e ceguinhos, coxos e doentes terminais. Não vá o erário público ficar lesado. Quando não se controlam os zelotas, costuma infelizmente dar nisto. Consta até que decidiram cruzar as bases de dados da Segurança Social com a das Finanças, para ver se descobrem a morada de um tal Lázaro, que dizem que morreu mas que afinal parece que não e que até se levantou mas não se apresentou ao trabalho. Mais um simulador, com certeza.

Como o assunto envolvia médicos e seus disparates, a Ordem dos ditos e o seu rubicundo e reboludo bastonário preferiram não se meter. Depois de anos a ignorar quando os clínicos mandavam pessoal para o maneta, fecha agora os olhos quando mandam manetas para a secção de pessoal, apresentar-se ao serviço. Julgava eu que o interesse para a sociedade das ordens profissionais seria o de praticarem alguma forma de auto-regulação. Devo estar enganado. O propósito da Ordem dos Médicos será com certeza algum. Talvez publiquem uma revista, a quatro cores, ou organizem torneios de “bridge”. Coisas úteis.

Mas voltando ao caso concreto, devo dizer que tenho simpatia por este ministro. Parece-me do género de tipo para quem dois vírgula nove é diferente de três vírgula um e este último é certamente mais do que três. Género algo quadradão, reconheço, que não serve para animar um festival de “rock” de verão, mas que convém para a pasta das finanças. E que infelizmente não possuíam alguns dos seus antecessores, mais elucubrantes e por vezes esquecidos das lições liceais sobre relações de ordem no conjunto dos reais.

Acho também que, nesta situação concreta, o ministro, fosse pelas boas ou pelas más razões, esteve excelente. Li críticas que lhe foram feitas, que diziam que ao contrariar uma decisão médica por um acto administrativo, o ministro tinha inaugurado um perigoso precedente. Discordo totalmente. Quer pela vertente médica, quer pela vertente administrativa.

O argumento de que uma decisão médica é inatacável de forma legítima por um não-médico é idiota e é perigoso. Leva a que uma decisão médica seja inatacável, “tout court”, uma vez que já vimos que médicos não atacam outros médicos, nem que eles se esqueçam de um bisturi cravado no cerebelo de um paciente. Por isso o argumento é perigoso. E é idiota, porque quando os médicos, ou os serralheiros, ou os praticantes de gaita-de-foles, dizem uma cavalidade evidente, seria uma idiotice da nossa parte não dizer que acabámos de ouvir uma cavalidade evidente e aproveitar para os apodar de cavalgadura para cima. Lembra-me isto um “sketch” em que o John Cleese, interpretando um médico, afirmava ao doente: “A fractura do seu braço esquerdo...” O doente interrompia: “Doutor, é no braço direito!” E Cleese, com aquela expressão única de desdém britânico: “Cale-se, imbecil! Por acaso você é licenciado em medicina?”

Por outro lado, mesmo que a regra geral fosse não desautorizar juntas médicas, ainda bem que o ministro pensa pela sua cabeça e quebra as regras quando acha que elas não estão a cumprir a função para que foram desenhadas. Apesar da palavra “ministru”, em latim, significar “criado”, aquele que cumpre ordens, eu espero dos ministros que, entre a justiça e o manual de procedimentos, escolham a justiça. Que nos casos-limite, decidam em função do que está certo e não do que está escrito. E se alguém se sentir lesado, existem parlamentos, tribunais, eleições e todos os “checks and balances” de um regime democrático para impedir decisões abusivas, e que hão-de funcionar se tal for necessário.

domingo, novembro 11, 2007

A raposa no galinheiro

A mais recente grelha da TV Cabo dá à cadeia televisiva norte-americana Fox, com quatro canais não-codificados, um lugar de relevo na programação do nosso principal operador de cabo. Se juntarmos o primo próximo AXN, temos cinco canais, cerca de dez por cento da oferta, num bloco homogéneo que oferece séries televisivas norte-americanas, de acção ou policiais, bem como alguns “soi-disant” documentários sobre o mundo policial nos Estados Unidos.

Essas séries obtiveram geralmente grande sucesso no seu país natal e repetiram-no noutras paragens, como em Portugal. São realizadas com grande rigor profissional e bem interpretadas. Em minha casa, os canais Fox e AXN teriam permanentemente um dos meus filhos colado ao ecrã, se eu não pusesse um pouco de ordem no curral. Eu mesmo acompanho, com prazer, algumas das séries propostas.

Se exceptuarmos os Simpsons, uma sátira brilhante e desinibida sobre a América de hoje, e Dr. House, que reflecte sobre o papel do génio, a fatia gorda da restante programação destes canais – incluindo os “documentários” – representa, de múltiplas formas, a luta de um lado inequivocamente bom da sociedade (representado por um homem ou uma mulher, ou um grupo, ou uma organização) contra um lado inequivocamente mau (porque desconhecido, ou porque conspirativo, ou porque levou ou pensa levar a cabo alguma maldade, que pode ir de uma rixa de rua a uma bomba nuclear em Minneapolis). Na realidade, a maldade mais frequente é o assassínio, por norma com requintes de malvadez e esforços de originalidade: na Fox, os guionistas conseguem conceber mais maneiras de limpar o sebo do que os portugueses inventaram receitas para dar cabo do bacalhau.

Como será normal em produtos de massas, no final ganham inevitavelmente os bons e os vilões recebem o justo castigo. Para garantir que tal aconteça, o lado do bem conta sempre com alguma característica – em gestão chamar-se-ia uma vantagem competitiva – que lhe garante a vitória. Os produtores têm deste modo uma receita para o sucesso: muda-se a característica e começa-se uma série nova. Se não, vejamos:

E mais exemplos há!

Que visão nos transmitem estas séries? Primeiro, a de um mundo a preto e branco, apoquentado por um mal estrutural e irredimível. Os maus correspondem frequentemente a estereótipos, do cadastrado, do terrorista estrangeiro, da mulher pouco casta. Sobretudo, os maus estão enredados na sua própria condição de maldade, arrastando consigo a grilheta de um pecado original em direcção ao abismo do crime. Por isso, são facilmente identificados pelas correlações matemáticas ou pelos perfis psicológicos. O criminoso passado torna-se imediatamente suspeito, porque o criminoso repete sempre o crime. Nestas séries, o ser humano tem uma profunda incapacidade de autodeterminação moral: se se nasce torto, nunca mas nunca se endireita. Se não fôr dos bons e se lhe deparar a ocasião, está feito o ladrão: mata automaticamente. Por esta razão, se um quadro de circunstâncias resultar na existência de uma motivação e de uma oportunidade, a suspeita dos bons sobre os maus avoluma-se. A presunção de inocência é, nestas séries, meramente retórica: procura-se a prova que confirma a culpa, não a que inocente o investigado.

Os bons, por outro lado, vivem do lado certo da vida. Por isso se permitem ter certezas rápidas. São metódicos, eficazes e orientados para o objectivo. Desprezam os maus como seres inferiores. Contrariamente a Cristo, sentem mais regozijo pelo pecador a mais no inferno do que tristeza pelo eleito a menos no reino dos Céus. Presos a esta perspectiva, os bons acham que os fins justificam os meios. Logo, se o Jack Bauer se vir na contingência de torturar um suspeito para obter uma preciosa informação, nós, o público, somos supostos compreender. E as contingências acabam por ser mais frequentes do que deviam.

O mundo mental destas séries é um mundo cercado, de medo e de anátema. O crime é a regra, não a excepção. É a manifestação premeditada de uma natureza humana viciosa, não o desvio irracional e acidental de uma natureza humana imperfeita. Neste mundo, espera-se dos simples espectadores que tirem consolo da protecção que lhes conferem as tais “características ímpares” das autoridades, ou seja, do poder. E deles se espera ainda que percebam que a autoridade é para aceitar, por ínvios que sejam os seus caminhos.

Em abono da verdade, diga-se que alguns dos realizadores tentaram fugir um pouco a este espartilho e introduziram alguma mesura na narrativa e alguma densidade nas personagens. Por exemplo, no CSI – Las Vegas. Mas são uma minoria.

Nada disto surpreende se soubermos que os canais Fox, pertencentes ao grupo News Corporation, de Rupert Murdoch, defendem acerrimamente a visão ideológica reaccionária de George Bush filho e da restante pandilha baptista do sul, inimiga da América liberal e democrática dos pais fundadores. Portanto, o peixe que estamos a comprar é exactamente aquele que a Fox nos está a pensar vender. Também não me surpreende que a TV Cabo sirva de banca ao peixe alheio. É um número de abaixamento a que em Portugal já estamos habituados.

Temos portanto a raposa instalada no galinheiro, a dissertar sobre a bondade da faca e do espeto. Não há mal em que olhemos para ela e nos divirtamos. Eu próprio, como referi, o faço. O importante é que, quando olharmos, saibamos ver que uma raposa é uma raposa, uma galinha é uma galinha e uma dentada no pescoço é uma dentada no pescoço.