quinta-feira, novembro 15, 2007

As juntas

Li no outro dia que o ministro das finanças, Teixeira dos Santos, contrariou o veredicto de uma junta médica que mandara apresentar-se ao trabalho uma senhora com uma doença degenerativa grave. A tal junta médica – ou, melhor dizendo, uma junta de médicos, provavelmente em roda livre e desorientada, sem o peso da canga e a resistência da lâmina do arado – declarara-a capacíssima de trabalhar, mau grado o detalhe menor de ela não conseguir andar ou ir à casa de banho sozinha.

Corre aí uma moda, nesses ajuntamentos de doutores que decidem, soberbos, sobre a vida alheia, de mandar trabalhar paralíticos e ceguinhos, coxos e doentes terminais. Não vá o erário público ficar lesado. Quando não se controlam os zelotas, costuma infelizmente dar nisto. Consta até que decidiram cruzar as bases de dados da Segurança Social com a das Finanças, para ver se descobrem a morada de um tal Lázaro, que dizem que morreu mas que afinal parece que não e que até se levantou mas não se apresentou ao trabalho. Mais um simulador, com certeza.

Como o assunto envolvia médicos e seus disparates, a Ordem dos ditos e o seu rubicundo e reboludo bastonário preferiram não se meter. Depois de anos a ignorar quando os clínicos mandavam pessoal para o maneta, fecha agora os olhos quando mandam manetas para a secção de pessoal, apresentar-se ao serviço. Julgava eu que o interesse para a sociedade das ordens profissionais seria o de praticarem alguma forma de auto-regulação. Devo estar enganado. O propósito da Ordem dos Médicos será com certeza algum. Talvez publiquem uma revista, a quatro cores, ou organizem torneios de “bridge”. Coisas úteis.

Mas voltando ao caso concreto, devo dizer que tenho simpatia por este ministro. Parece-me do género de tipo para quem dois vírgula nove é diferente de três vírgula um e este último é certamente mais do que três. Género algo quadradão, reconheço, que não serve para animar um festival de “rock” de verão, mas que convém para a pasta das finanças. E que infelizmente não possuíam alguns dos seus antecessores, mais elucubrantes e por vezes esquecidos das lições liceais sobre relações de ordem no conjunto dos reais.

Acho também que, nesta situação concreta, o ministro, fosse pelas boas ou pelas más razões, esteve excelente. Li críticas que lhe foram feitas, que diziam que ao contrariar uma decisão médica por um acto administrativo, o ministro tinha inaugurado um perigoso precedente. Discordo totalmente. Quer pela vertente médica, quer pela vertente administrativa.

O argumento de que uma decisão médica é inatacável de forma legítima por um não-médico é idiota e é perigoso. Leva a que uma decisão médica seja inatacável, “tout court”, uma vez que já vimos que médicos não atacam outros médicos, nem que eles se esqueçam de um bisturi cravado no cerebelo de um paciente. Por isso o argumento é perigoso. E é idiota, porque quando os médicos, ou os serralheiros, ou os praticantes de gaita-de-foles, dizem uma cavalidade evidente, seria uma idiotice da nossa parte não dizer que acabámos de ouvir uma cavalidade evidente e aproveitar para os apodar de cavalgadura para cima. Lembra-me isto um “sketch” em que o John Cleese, interpretando um médico, afirmava ao doente: “A fractura do seu braço esquerdo...” O doente interrompia: “Doutor, é no braço direito!” E Cleese, com aquela expressão única de desdém britânico: “Cale-se, imbecil! Por acaso você é licenciado em medicina?”

Por outro lado, mesmo que a regra geral fosse não desautorizar juntas médicas, ainda bem que o ministro pensa pela sua cabeça e quebra as regras quando acha que elas não estão a cumprir a função para que foram desenhadas. Apesar da palavra “ministru”, em latim, significar “criado”, aquele que cumpre ordens, eu espero dos ministros que, entre a justiça e o manual de procedimentos, escolham a justiça. Que nos casos-limite, decidam em função do que está certo e não do que está escrito. E se alguém se sentir lesado, existem parlamentos, tribunais, eleições e todos os “checks and balances” de um regime democrático para impedir decisões abusivas, e que hão-de funcionar se tal for necessário.

1 comentário:

NunoF disse...

suspeito que vais publicar um follow-up deste artigo, dada a recente soberba estúpida da Ordem dos Médicos ao recusar mudar o código deontológico dos médicos para estar de acordo com as alterações à Lei.