segunda-feira, dezembro 03, 2007

Três aparições de Kant num curral

Imagine quem me lê que uma mulher tinha dois filhos, um normal e outro que nascera com uma deficiência mental profunda. Posta nesta situação, adoptava o seguinte raciocínio: o meu dinheiro não chega para tudo; o meu tempo também não; mais vale por isso dar mais ao que é normal e que precisa de crescer bem do que ao outro que se calhar nem percebe o que se está a passar e que não tem grande futuro. E consequentemente, esta mãe canalizava os seus recursos e a sua dedicação ao filho são, deixando o outro mais abandonado, sacrificava por vezes a compra dos medicamentos deste último à satisfação dos normais caprichos de criança do primeiro, dedicava mais tempo a apoiar os trabalhos de casa de um do que a mudar a cama onde o outro jazia e assim sucessivamente. Mesmo que fosse verdade que a deficiência do filho doente fosse tal que ele nem sequer entendesse ou, no limite, que ele nem sofresse, que pensariam desta senhora? Aposto, singelo contra dobrado, que lhe chamariam monstro, com todas as letras.

Já todos vimos filmes em que um grupo de pessoas que não se conheciam se vê de repente atingido por uma catástrofe daquelas que os seguros não cobrem (naufrágio, incêndio no Empire State Building, fusão de um reactor nuclear, etc.). Em regra, nessas fitas, há sempre um ferido com alguma gravidade, de prognóstico reservadíssimo, que atrasa o grupo na sua fuga pela sobrevivência, reduzindo dramaticamente as suas já escassas probabilidades de sucesso. À primeira contrariedade, tipo desmoronamento ou explosão de gás, um dos personagens, sobre quem vai recair o ódio dos espectadores, diz algo como “se não o deixamos aqui, não temos qualquer hipótese”. O visado não pode deixar de concordar: “Ele tem razão. Safem-se vocês. Deixem-me ou morremos todos”. Claro que ele tem razão e todos o sabem. No entanto, o herói da história, contrariando o bom senso e as probabilidades, faz um “statement” do género “ou vamos todos ou não vai ninguém”, pega no ferido às cavalitas e desarvora por ali fora com os outros a reboque.

Perto do fim do filme, acontece sempre algum azar ao cínico que queria abandonar o outro desgraçado à sua sorte. Ou leva com uma viga de duas toneladas em cima ou cai por um inesperado poço abaixo, o que salva todo o grupo, numa espécie de “trade-off” cósmico. A morte do malandreco é celebrada mentalmente pelos espectadores, que pensam algo como “Querias deixar lá o outro não é? Bem que te lixaste”. Digam lá que não é assim?

Nas duas situações que referi, o que está em jogo é uma visão ética bastante vulgar nos seres humanos, independentemente do “background “ cultural, segundo a qual quando está em causa a dignidade, o sofrimento ou a vida de pessoas, o comportamento colectivo dos grupos nos quais essas pessoas se integram não deve resultar apenas de considerações de eficiência ou eficácia.

A grande maioria de nós vê como absolutamente errado que não se tente até ao limite salvar um ferido, mesmo num caso como o descrito em que, racionalmente, o comportamento oposto levaria a maximizar a esperança de vida de todo um grupo. De igual modo, a nossa condição humana leva-nos a esperar que uma mãe que se veja na situação inicialmente mencionada tenha, senão tanta, mais dedicação ainda ao filho doente, porque é o mais frágil. O facto de a criança poder nem ter consciência não altera esta nossa percepção. Pelo contrário, vemos como exemplos a seguir ou, até, heróis, aqueles que em situações como as citadas adoptam um comportamento que, podendo não ser o mais “lógico”, é o “correcto”.

Tentar salvar o nosso semelhante, não abandonar os mais fracos, são aquilo que Kant definia como “imperativos categóricos” ou seja actos sem fim instrumental, que se impõem por si próprios e que devem ser praticados incondicionalmente.

A concepção moral que lhes está associada é tão frequente que a biologia põe hoje a hipótese de o homem a ter desenvolvido de uma forma “darwiniana”: os grupos que tinham comportamentos que hoje vemos como nobres tinham melhores condições, a longo prazo, de sobreviver. Se assim foi ou não, para mim não tem importância. O que interessa é que a humanidade tenha conseguido criar e fazer perdurar um quadro de valores que não é puramente egoísta.


Veio-me esta lenga-lenga toda à cabeça após ler um artigo sobre a situação de crianças que, em Portugal, nascem com doenças raras, por vezes muito incapacitantes. Pais que pagam do seu bolso viagens ao estrangeiro para visitar médicos com a especialidade que em Portugal não há, usando os seus dias férias porque não têm qualquer apoio no emprego, com grande sacrifício, como se expiassem uma falta que não cometeram. Como sociedade, em que os ajudamos? Em nada. Estes pais foram abandonados por todos nós. Fomos andando para nos safar, que se fazia tarde, e ali os largámos à sua sorte. Portamo-nos como o filho-da-puta do filme, pensando mais na vidinha do que nas nossas obrigações. Pode ser que também acabemos debaixo de uma viga, antes da última cena. Não deixava de ser muito bem feito.

Para mais, nestes como noutros casos, não está em causa a maior ou menor probabilidade de morrermos todos. Está apenas em causa dinheiro. Paciência. Crescemos menos meio por cento ao ano. Investimos em menos uma auto-estrada. Vamos mais devagar. Não podemos é tolerar que sejamos uma sociedade que abandona os seus doentes à sua sorte, num “darwinismo” social repugnante.

Uma sociedade que não entende que também tem os tais imperativos categóricos, que nem tudo se traduz em entradas e saídas de orçamento, não é uma sociedade. É um curral.

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