sexta-feira, dezembro 14, 2007

A coisa está a aquecer

O jornal Público brinda-nos durante a semana, na última página, com uma curiosa secção chamada “Pingue-pongue”. Nela, um Rui Tavares, historiador, e uma Helena Matos, jornalista, alternam a desdizer-se e a digladiar-se, seja qual for o tema, para nosso sorriso e por vezes para nosso bocejo. O Tavares é suposto representar a “esquerda” e a Matos a “direita”. Ambos se entregam ao desempenho dos seus papéis com a sofreguidão própria de gente de ideias muito arrumadinhas, em prateleiras e gavetinhas, com muitas certezas à mistura. Acabam por isso a interpretar mais os estereótipos do que o pensamento, propriamente dito, de esquerda ou de direita.

Espreitando nas entrelinhas, vem-nos espontaneamente a imagem de um Rui todo sensível, de lágrima ao canto do olho perante as maldades do mundo, empolgando-se com multidões embandeiradas, usando garridas calças de algodão do Egipto e sandálias alemãs. Do outro lado, uma Helena muito mulher-macha, arvorando rigores de testosterona, indignada com as fraquezas de carácter do Estado social e as lamúrias mariquinhas dos bons selvagens que preferem a aspereza inútil de uma falésia algarvia a um bom golfe de nove buracos e mil e quinhentas camas.


Lenine escreveu que o esquerdismo era a doença infantil do comunismo. Lenine queria criticar certos comunistas, que de tão obcecados com a pureza dos princípios, perdiam puerilmente o sentido das realidades e a eficácia da luta política. Sem querer ombrear, pobre de mim, com o homem com a pêra mais célebre da história, eu acrescentaria que o direitismo deve ser a doença geriátrica do fascismo. O direitista debita, vai-não-vai, farrapos de ideias velhas, que emergem sem aparente noção da realidade, vindas de uma memória nostálgica e vencida, num autêntico Alzheimer de conceitos.

Obrigados a encher a cada dois dias três colunas de diário, com o cérebro espartilhado pelos esquerdismos ou direitismos que se impuseram, o Tavares e a Matos frequentemente assistem ao próprio pé a fugir para a chinela do disparate. Em menos de um fósforo, aí estão eles a pensar o impensável, agitando um chavão qualquer num vácuo de ideias, freneticamente, como as braçadas que dão os cágados virados de costas.

Há dias, a Helena pulverizou todos os recordes de idiotice, de regionais a interplanetários, atacando as preocupações com o aquecimento global – pelos vistos, uma inquietação esquerdista – com o seguinte e tranquilizador exemplo: na Europa Central, entre 1570 e 1630, três a quatro mil mulheres terão sido queimadas como bruxas na sequência de chuvas, secas e outras pragas que destruíram as colheitas da vizinhança. Donde, já havia desordens climáticas. Donde, não há azar com o CO2 que se anda para aí a debitar. “Quod erat demonstrandum”, versão Helena Matos.

Obviamente, a menina Helena não captou a essência do problema, que se resume nos seguintes passos:

1) Os políticos ou os ecologistas não inventaram o efeito de estufa. O efeito de estufa é um fenómeno conhecido, física e quimicamente bem caracterizado. O efeito de estufa já existia na altura em que os dinossauros andavam aí a contribuir para o problema, exalando dióxido de carbono e bufando metano quando a digestão lhes corria menos bem. O efeito de estufa sempre foi uma das componentes do equilíbrio termodinâmico da nossa atmosfera.


2) A teoria diz-nos que mais emissões de gases de estufa provocarão maior retenção de energia solar na nossa atmosfera e logo temperaturas de equilíbrio mais altas. Faço notar, em proveito das Helenas deste mundo, que a palavra teoria não tem conotações pejorativas. As teorias do electromagnetismo permitem ao pessoal ter luz lá em casa e as teorias da mecânica dos fluidos aguentam no ar algumas toneladas de alumínio, pintadas com as cores da TAP.


3) As grandezas da física da atmosfera apresentam, por natureza, uma enorme variabilidade, no espaço e no tempo. Temperaturas, precipitações, velocidades do vento, flutuam a cada dia, a cada mês, a cada ano. A nossa vivência transmite-nos essa experiência. A nossa memória, essa, funciona como um filtro, valorizando mais os acontecimentos recentes e, sobretudo, os valores extremos. Eu, por exemplo, tenho uma memória muito nítida dos dias dos meus exames finais de liceu, em que uma vaga de calor levou Lisboa acima dos quarenta graus, fazendo com que as meninas se apresentassem às provas de “cai-cai” e mini-saia. É uma imagem que, provavelmente devido ao calor, guardo num cantinho privilegiado da minha lembrança.


4) A matemática, por outro lado, aborda a evolução das grandezas meteorológicas de uma forma mais rigorosa do que a memória humana. Se pegar numa hipotética listagem com todas as temperaturas tiradas ao meio-dia no Terreiro do Paço durante cem anos, um matemático olhará para a sequência de números e colocá-los-á num gráfico para ver o aspecto da evolução ao longo do tempo. A temperatura andará num permanente zigue-zague, para cima e para baixo, sem uma lógica aparente. No entanto, calculando certas grandezas a partir daqueles números (médias, variações e outras mais complicadas), o matemático eliminará a informação que não interessa (a que se chama “ruído”) e encontrará a resposta a muitas perguntas: será que existem comportamentos que se repetem? Provavelmente, são as estações do ano. Será que existe uma tendência para as temperaturas no longo prazo, a mais de um ano, irem subindo? Uma inflação das temperaturas parecida com a que encontraríamos numa série de preços de um bem?


5) No caso das análises a variáveis meteorológicas, o tal ruído é enorme, dificultando a obtenção de conclusões com um grau de certeza muito elevado (as pessoas de ciência, contrariamente à Helena, gostam de graus de certeza elevados para poder tirar conclusões). No entanto, a análise feita pela grande maioria dos especialistas sérios aponta para que exista uma tendência nessas grandezas (subida das temperaturas, aumento do número de furacões por ano gerados por um mar mais quente, diminuição das área das calotes polares que derretem com um ambiente menos frio, etc.). Tendência que aponta para a existência de um aumento global da temperatura do planeta.


6) Existindo um mecanismo teórico que aponta para a existência do fenómeno, havendo números que sugerem que as coisas não estão de facto a correr muito bem, e sendo as consequências potencialmente muito chatas para os que vierem a seguir a nós, se calhar convinha fazer qualquer coisa. A menos que não nos importemos que os nossos descendentes apanhem o cacilheiro no cimo do Parque Eduardo Sétimo e que os futuros Sporting-Benfica possam ser interrompidos por tempestades de areia. Isto, para não falar aqui de coisas piores, como guerras pela água, fomes e outros cenários.

O problema da Helena está em não ter percebido que a ciência não se discute como se discute um conceito ético ou metafísico. A ciência discute-se pondo mais ciência em cima, contrapondo ciência, melhor ciência, à ciência. Se a Helena não quer fazer má figura, que trabalhe os dados, melhor do que os cientistas que o fazem. Ou então que se cale!

Por mim, estou moderadamente preocupado. Não me sabe bem que os meus netos nos venham acusar de lhes ter deixado para viver um forno onde se esturrica que nem na fogueira das bruxas, de que falava a Helena. Por outro lado, acredito que se pode fazer algo. Que o problema pode ser controlado ou invertido. Mas, como diria o meu avô, para ganhar a lotaria é preciso comprar um vigésimo. Ou, em linguagem do século XXI, para ganhar o Euromilhões tem que se depositar o boletim.

1 comentário:

Cristina Rodo disse...

Só para dizer que estive cá, vi que há post novo mas que dado o adiantado da hora, o assunto do mesmo e o actual estado lamentável da minha cabeça, terei de voltar noutra altura para o ler...
O Biriba esteve aqui.