Como os leitores mais fiéis poderão deduzir, se conhecerem o
Mataspeak de cor de trás para a frente, costumo dividir as minhas férias
estivais entre quinze dias em Porto Covo com família e maralha e alguns dias de
“marketing” matrimonial com quem me vai aturando. Este ano optámos para estes
últimos por algo mais itinerante, indo conhecer Galiza e Norte de Portugal, dois
países sem Estado povoados respectivamente por galegos e “homens do Norte”.
De caminho, ao passar o Douro, desvio logo no fim da ponte
da Arrábida para o Campo Alegre, em demanda de uma francesinha. O Porto tem
algumas coisas de que se orgulhar: um certo fascínio de cidade burguesa e
libertária, uma cepa escondida de onde brota boa literatura, música e pintura,
a vista da Ribeira para a Ponte D.Luís e as caves de Gaia e – admito-o a contra-gosto,
num assomo de fraqueza e de franqueza – uma equipa de futebol jeitosa. Além destas,
claro, tem a francesinha.
Surpreende que uma receita tão recente se tenha tornado em muito
pouco tempo omnipresente numa região. Existe unanimidade em que foi criada no
restaurante Regaleira, a Santo Ildefonso, nos anos cinquenta do século passado,
por Daniel David Silva, que trouxe de França onde estivera emigrado o “croque-monsieur”,
o desamaricou colocando salsicha e linguiça e o alagou num molho picante único
na cozinha portuguesa. Nenhum outro prato nacional procura competir desta
maneira com o “chilli” e o “tandoori”. É uma flor tropical que, garrida, se
enraizou contra toda a probabilidade no cinzento do granito nortenho.
Paradoxalmente, a minha primeira experiência de francesinha
tive-a no Algarve, pelos meus doze anos. Foi na grande casa junto à ria da
Fuzeta pertencente aos padrinhos da minha mãe, onde eu passava sempre uns
quinze dias de Verão, uma casa de muitos irmãos e primos e afilhados que
apinhavam o vasto “quarto dos rapazes” e onde eu aprendi alguns dos principais
princípios da vida. Os mais velhos, já estudantes na Universidade do Porto,
organizaram certa noite uma patuscada de francesinhas para mais de vinte
pessoas, para curiosidade da maioria dos convidados que nunca tinha ouvido
falar em tal coisa. Recordo-me que os
universitários preparam dois tachinhos de molho: um, para a generalidade dos
comensais, com meio pacote de piri-piri. Outro, mais pequeno, só para eles, com
dois pacotes. Comi a minha francesinha com o molho “light” e fiquei para aí
duas horas com a língua dependurada dentro de um copo de água fresca, a ver se
passava. Sempre fiquei a imaginar como seria o molho “hard”, provavelmente uma
coisa mefistofélica a meio caminho entre o ácido sulfúrico e o fogo dos
infernos, mas que os estudantes aviaram com ar satisfeito entremeando com um comboio de cervejas Sagres. Em todo o caso, ambos os tachinhos respeitaram os
cânones da receita: o piri-piri, tal como o sal, é “q.b.”.
Depois dessa experiência precoce tomei-lhe o gosto, que só
consigo saciar na capital do Norte. Já experimentei algumas em Lisboa mas
sempre sem sucesso: ou são uma trampa sem vergonha ou falta-lhes pelo menos um
ingrediente qualquer, talvez a aragem que passa pelas águas do Douro. Desforro-me pois nas idas ao Porto, cada qual
com sua francesinha. Costumo comê-las no Capa Negra II, na Rua do Campo Alegre,
como desta vez, ou no Convívio, ao pé do Bom Sucesso. Ambos estabelecimentos
com uma pinta simpática a anos setenta, com generoso balcão americano,
empregados de camisa branca e calça negra com ar de trinta anos de casa, e a um
canto o cubículo da tabacaria, atapetado a revistas, mal deixando ver o postigo
por onde a mão do lojista se estende para entregar o troco.
O Capa Negra II e o Convívio são duas apostas seguras, mas recentemente
um colega do Porto, tripeiro de gema, daqueles que põe us no meio e és no final
das palavras, explicou-me onde se encontra a melhor francesinha do Porto. Levou-nos
lá, só que parámos o carro e batemos com o nariz na porta, que era dia de
folga. Fomos portanto a outro sítio, onde ele declarou:
- Aqui é a melhor francesinha do Porto!
- Não era no outro sítio?
- Era se estivesse aberto. Como estava fechado passou a ser
aqui.
No Porto, a melhor francesinha é em todo lado. É onde se calhar
estar.
1 comentário:
Pfffff... tanta coisa para contar (não estou a sugerir que fosse sobre o marketing matrimonial, senão era um tédio)e vai-me falar de francesinhas...
Ass: parte da maralha
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