domingo, julho 28, 2013

Coltura em Portugal



Caí no conto do vigário e rumei ao Palácio da Ajuda para ver a tão publicitada exposição de Joana Vasconcelos. Ao redor do paço, prenunciando a fila que teríamos que ultrapassar para entrar, as beiras dos passeios estavam assoberbadas de viaturas pelo que tivemos que deixar o carro no vasto terreno tutelado pela Torre da Paroquial, onde em tempos a família real viveu num palácio de madeira e pano recheado dos maiores luxos. D. José I tinha ficado tão traumatizado pelo terramoto de 1755 que se recusava a viver entre paredes de pedra. Mandou construir no Alto da Ajuda, local suposto de menor actividade sísmica, uma edificação de dois pisos sem alvenaria, a que se chamou “a Real Barraca”. Aí viveu D. José até morrer em 1777. Em 1794 a Real Barraca foi destruída por um incêndio e poucos anos depois começava a construção do que viria a ser o nunca acabado Palácio da Ajuda.

Em jeito de aparte: serve-nos de consolo pensar, num momento em que o nosso presidente da república acabou de montar outra real barraca, que ele não foi o único e que o país vai conseguindo sobreviver ao longo dos séculos apesar desta tendência campista dos nossos máximos dirigentes.  Só que se para a barraca de D.José bastou uma candeia mal apagada para que ela se fosse, para a actual vai ser preciso o pacote inteiro de velas – e calhando nem chega!

Chegados nós ao palácio, comprados os bilhetes, acometemos a bicha que serpenteava pelo pátio interior, ao sol das três da tarde, longa de gente e mais gente apesar dos dez euros de entrada. A última e quase única vez que tinha feito uma fila destas para entrar num museu fora em Paris, no Quai d’Orsay, onde para além da colecção permanente se exibia uma grande exposição com os maiores nomes do impressionismo. Ora é diferente apanhar sol na tola para ver Renoir ou Manet ou para ver Joana Vasconcelos. Será a mesma diferença que entre penar para assistir à final da copa do mundo ou ao Rio Ave-Paços de Ferreira. Por muito que o “marketing” proclame, não é pelo Paços vestir de amarelo que passa a ser o Brasil. E por muito que o “slogan” da exposição o afirme, Joana de Vasconcelos não é a maior artista portuguesa da actualidade, a menos que pelo tamanho das peças. Mas aparentemente a publicidade enganosa consegue enganar, já que as pessoas, que dificilmente vão nos mesmos números à Gulbenkian, continuam a chegar à Ajuda, meses após meses de exposição, engrossando o magote que se alinhava à torreira, tapando o coco com malas de mão e jornais dobrados para não cair de insolação.

A exposição é um fracasso, mas a visita pode ser, para quem quiser, um sucesso. Adiante explico.


Contrariamente ao que a organização anuncia, os trabalhos de Joana Vasconcelos não dialogam nesta exposição com o espaço nem com o tempo das salas do palácio, excepto num único caso, o da conhecida peça Marylin, os sapatos de salto alto gigantes feitos de tachos e panelas. Neste caso de facto é atingido um equilíbrio entre a dimensão da obra e a grandiosidade da sala. Aqueles sapatos gigantes são estranhos à sala, mas não se estranha que ali estejam, e o faíscar das luzes dos candelabros, reflectido nas múltiplas superfícies das duas peças, cria uma unidade entre objecto e espaço que não ocorre em mais nenhum momento da exposição. Há algumas outras instalações curiosas mas em que a sala não se vê (a “Coração Independente Vermelho” ou a “Jardim do Éden”) ou é anulada pelo lado muito pimba da peça (a “Lilicóptero”). De resto abundam os bichos de louça revestidos a croché, quase invisíveis na maioria das salas, esmagados pelo aparato da decoração novecentista. Bichos para todos os gostos, até à náusea: o gato e o cão, a cobra, a tartaruga e o crocodilo, a lagosta e o caranguejo, o sapo, a abelha, o touro, o cavalo. Como sobraram rendas e faltaram bichos e ainda deu para cobrir de croché umas figuras de menina e uma televisão a transmitir o Eurofestival. Provavelmente haverá um sentido oculto em tudo isto, só que o meu débil entendimento não alcança.


Mas quem não quiser dar por perdido tempo e dinheiro, e tornar em sucesso o possível fracasso, pode sempre dedicar-se a admirar o palácio e o seu recheio e imaginar a vida quotidiana que lá viveram D. Luís e Dª. Maria Pia, um intervalo de aparente felicidade entre dois destinos trágicos, o de D. Pedro V e o de D. Carlos. Para ajudar à imaginação, basta ler os textos colocados em cada sala em pequenas tabuletas, enriquecidos com passagens de livros de memórias de quem com eles conviveu. Assim salvará a visita. Destaque aqui para as várias transcrições de Thomaz de Mello Breyner, quarto Conde de Mafra, médico e político, companheiro de brincadeiras do jovem infante D.Carlos, que nos descreve aqueles tempos com uma escrita garrida e plena de humor. Fiquei cheio de vontade de ler esse volume de memórias, mas uma pesquisa na “internet” permitiu-me concluir que não é reeditado desde 1930 e só se encontra já em alfarrabistas.


Não deixa de ser uma curiosa ironia sobre o estado do apreço pela cultura em Portugal que se faça fila na rua para ver Joana Vasconcelos e que se deixem cair no esquecimento as memórias de Thomaz de Mello Breyner e outras pérolas da nossa memória, quando não grandes vultos da nossa literatura. A título de exemplo, tentem lá arranjar Sá de Miranda. Numa livraria, impossível: mais facilmente compram uma “obra” de um locutor de têvê, essa magna escola literária, ou três cartuchos de tinta preta pelo preço de uma impressora.

Sem comentários: