domingo, setembro 25, 2011

Férias (VII) – Do álbum

 "Frisbee" na praia dos Aivados

 Torre del Mar

 Arredores do Cercal

 Torre del Mar

 Vendedora, estudante e andaluza, em Torre del Mar

Praia da Vieirinha

sábado, setembro 24, 2011

Férias (VI) – Segunda leitura

 
Sex and drugs and rock’n’roll
Is all my brain and body need
Sex and drugs and rock’n’roll
Is very good indeed

Ian Dury, in “Sex&Drugs&Rock’n’Roll”

Este foi o Verão das leituras pesadas. Depois das provações terríveis de uma humanidade cega (vide aqui), seguiu-se uma viagem aos abismos mais tenebrosos da trilogia sexo-drogas-rock’n’roll com “Please kill me”, subtitulado “The uncensored oral history of Punk”.  São quinhentas páginas de letra miúda exclusivamente com testemunhos de cerca de duzentas pessoas que viveram por dentro o “punk” americano, fenómeno essencialmente nova-iorquino. Compilaram Legs McNeil e Gillian McCain. 

São páginas deprimentes. No que nos é contado nada foi “very good indeed” como na paródia britânica de Ian Dury acima citada. O sexo era mecânico e sem amanhã, as drogas eram duras e sem liberdade e o “rock’n’roll” soava de uma violência sem destinatário ao lado da qual os Sex Pistols pareciam um chá das cinco (que por acaso até tomavam, como bifes que eram).

Esta história do “punk” vai muito atrás, muito antes da explosão britânica de 76. Começa em 1967 com Lou Reed, John Cale e os Velvet Underground no ambiente peneirento-intelectual da Factory de Andy Warhol e segue sobretudo com Iggy Pop e os Stooges, todos profetas antes da sua hora que criaram as raízes de um “rock” acerado, negro, exultante de negatividade e violência numa época em que paz e amor californianos dominavam as tabelas.

Depois esta semente medrou no momento apropriado, através de nomes como Tom Verlaine, Patti Smith, Richard Hell, Johny Thunders, Jerry Nolan ou Dee Dee Ramone, mas quase sem sair dos habituais clubes como o CBGB, até que um rapaz inglês dado à produção, Malcolm McLaren, viu, voltou à pátria e copiou, montando o seu produto à imagem e semelhança do que vira no “bas-fond” nova-iorquino: os Pistols. Como ele confessa aliás sem remorso em “The great rock’n’roll swindle”, em excertos como este:

- There was Steve Jones. Eighteen years of age. A brilliant cat burglar. I nominated him guitarist.

E acabou por ser no Reino Unido que o movimentou estourou em fama e abriu as portas a um renovar do “rock” dos dois lados do Atlântico, com muitos momentos gloriosos e imorredouros.

Mas “Please kill me” não fala apenas pela voz dos nomes que perduraram. Conta também a visão dos produtores, preocupados em espremer o potencial lucro de um produto potencialmente auto-destrutivo, das “groupies” que saltavam de leito em leito e de banda em banda até não ter mais para onde saltar senão para a sarjeta, dos poucos que, como o “stooge” Ron Asheton, apenas queriam tocar e olhavam de cima para o pantanal onde se moviam e de muitos que meramente enxameavam ao redor.

“Please kill me” acaba por ser uma leitura formativa sobre estranhos numa terra estranha que julgam ser a dos seus sonhos de adolescência mas que para muitos e sobretudo para os menos bem-nascidos acaba por ser um pesadelo lento, denso, amargado e terminando para alguns num beco. Honra lhe seja feita, vale pela franqueza.


domingo, setembro 18, 2011

Férias (V) – Surfismo

Nas praias das minhas férias, processionários nas dunas, as pranchas a tiracolo ou amparadas pelo braço, vão os surfistas.

O surfismo é uma religião que nasceu nos EUA em meados do século XX e se estabeleceu nas duas últimas décadas do mesmo século na orla marítima portuguesa e noutras zonas costeiras da Europa.

Os mais distraídos poderiam pensar, cingindo-se às aparências, que o surfista pratica um desporto, o surfe (que é como aquela coisa se escreve em português). Nada de mais míope. O surfista adere a um credo, com os seus ritos, os seus sacramentos e as suas hieraquias, que lhe orienta o modo como veste, o modo como fala, o modo como pensa e até o modo como vive. Na esplanada do café, em férias, dificilmente topamos ao nosso lado o andebolista amador ou o amante da maratona. Fora do recinto ou da pista, despido o equipamento, tornam-se pessoas como as outras, misturando-se na multidão. Ao contrário, os surfistas da vizinhança não nos escaparão certamente, pela carinha e pelos tiques. E então se abrirem a boca para falar, nem se fala.

Poder-se-ia até estabelecer um paralelo entre a religião surfista e a sua homófona sufista, a versão mística do islamismo. Os estudiosos do sufismo definem um dos seus objectivos como o afastamento de tudo menos de Deus. O surfismo respira a mesma costela extática, levando ao afastamento de tudo o que não leve à boa onda. O sufista manifesta o seu transe rodopiando sobre si próprio, como se vê nos derviches. O surfista fá-lo bamboleando o rabo em cima de uma tábua de espuma de poliuretano.

  
O rito surfista começa na praia, acartando as pranchas do carro para o areal. Estas são manufacturadas por uns tipos chamados “shapers” utilizando espuma chamada “foam” e colocando-se para estabilidade umas alhetas que se chamam “fins”. Chegados ao destino, enceram a tábua (que se chama “board”) com uma cera (que se chama “wax”) . Trazem para lanchar uns pães chamados “breads” nuns sacos chamados “bags” que acompanham com umas cervejas chamadas “beers”... Bem, esta última frase já será exagero meu, mas tal como o latim se tornou a língua do catolicismo, o inglês é mesmo a do surfismo, presumivelmente para dar a pinta cosmopolita que pode sempre fazer falta a quem não a tem.

Durante o enceramento da prancha, começa-se a distinguir a hierarquia. O surfista experiente esquece-se sempre da cera, inquirindo diletantemente junto dos demais: “tens wax?”. Normalmente há sempre um surfista mais maçarico, que conseguiu cravar aos pais dinheiro para a parafernália toda, que se apressa a ceder a sua ao graduado. Este esquema começa a funcionar pior à medida que os diversos surfistas da praia vão ganhando experiência e logo começando a fazer valer os seus direitos, esquecendo também a sua “wax”, o que pode provocar grandes romarias de surfistas desencerados a rondar-se uns aos outros em demanda da cerúlea substâcia.

Preparada a prancha, o surfista coloca os paramentos. Estes consistem num fato de material borrachento, negro nas pernas e na maior parte do corpo. O fato veste-se, sobretudo nas pernas, com a mesma dificuldade aparente com que um senegalês colocaria um preservativo de dimensões inglesas. Cada centímetro de coxa é vencido aos sacões, os pelos arrepelados, com um esgar de dor na face. Não raras vezes, sobretudo no despir, precisam da ajuda dos companheiros. Colocada finalmente a vestimenta, fecham o fecho-éclair das costas uns aos outros como senhoras em dia de baile.

Esta volúpia em meter um revestimento de borracha preta quando podem ferver quarenta graus à sombra parecerá um pouco “sado-maso”, mas não. O fato térmico tem real utilidade porque a principal actividade do surfista é estar parado dentro de água. Com efeito, o surfista, entrado no oceano, nada de bruços até à zona onde as vagas iniciam o seu encruamento e aguarda, deitado sobre a prancha ou a cavalo nela, esperando a onda ideal como se espera um Godot dos mares. Na praia dos Aivados, onde testemunhei os factos que aqui narro, é ver ao longe a linha que se forma de cabecinhas flutuantes, subindo e descendo com a ondulação durante horas. De vez em quando, lá há um audaz que se afoita a empoleirar numa onda mais vincada para logo se baldar da tábua abaixo uns metros mais à frente, quando não imediatamente. Poderá surpreender, mas tal parece ser satisfatório. Ao regressar a terra, a prancha debaixo do braço, ouviremos o surfista ensopado e sorridente a dizer ao confrade que vai entrar:

- Hoje tão muito boas. Consegui fazer duas ondas, “man”!

Estranho porque num jogo de futebol os comentadores comentarão, sobre um jogador que só tocou duas vezes na bola durante hora e meia, que “passou completamente ao lado do jogo”. Ao invés, no surfismo, duas ondas manhosas em noventa minutos e é a glória total e absoluta. 
Fora de água, em ambiente urbano, o surfista arrasta os pés e socializa quando encontra outros que tal. Os surfistas cumprimentam-se com um aperto de mão especial, de braço erguido, batendo as palmas com força. Como concebem com dificuldade que o mundo não seja todo composto por surfistas, tendem a alargar esse cumprimento brejeiro ao resto da população, fazendo alguma figura de urso aqui e ali, baixando a pata desengonçadamente quando alguém lhes estica um mais normal passou-bem. 

Tal como a das beatas que se ajuntam no adro, a conversa típica dos surfistas cobre uma grande amplitude de temas. Versará possivelmente o surfe, mas em alternativa também o surfe, podendo ainda acontecer por vezes que se fale de surfe. Para os leigos que os ouvem, a discussão tenderá a parecer de mentecaptos, mas isso deve-se apenas às trevas em que vivem esses leigos, ignorantes que são da sapiência que se esconde por trás daquele discurso hermético de ladaínha.

Uma entidade mítica muito referida, provavelmente deus maior do panteão surfista, chama-se “swell”. O “swell” manifesta-se intermitentemente (nem sempre “está”) mas quando “está” vem sempre “grande” ou, mais frequentemente, “ganda”:

- Tive na praia das caracoletas e tava um “ganda swell”, “man”!

O entusiasmo reverente com que é mencionado contrasta com o desapontamento evidente nas caras dos surfistas quando, chegados à praia das caracoletas após uma penitência de quinze quilómetros de condução, guiando de pescoço a quarenta e cinco graus por causa da prancha entalada entre o vidro de trás do carro e o pára-brisas, verificam que o grande “swell” afinal não “está”. A ausência de “swell” equivale a uma deserção do mundo por Deus, uma vez que impede a prática. A esta praga do Egipto surfista dá-se o nome de mar “flat”. Que suponho que queira significar plano. “Probably”.

Outros entes recorrentes, provavelmente de menor patente, são os “tubos”. Os “tubos” podem aparecer – ou não – quando o “swell está”. Pelo que entendo, são uma espécie de anjos que acompanham a divindade. A prova que os tubos têm uma importância secundária reside no facto de o seu nome ser português, idioma obviamente pouco fresco – perdão – pouco “cool”. A especificidade teológica dos tubos vem de que não só “estão”, como se “fazem” (mas só a partir de um certo diâmetro; dizem os surfistas que “fiz um ganda tubo”, nunca um “mero tubo” ou um “pequeno tubo”).

Se o comportamento do surfista seco é algo gregário, na água torna-se agressivo, podendo chegar a perigoso. Infestam largos troços de praia aparentemente sem compreender que o bico de uma prancha espetado num crânio humano pode causar perturbações graves nos sinais vitais. Ziguezagueiam no limite entre surfistas caídos e banhistas inocentes com a atitude impúdica de Arnaud Amaury, legado do papa na expedição de massacre dos cátaros em 1209: “Matem-nos a todos. Deus reconhecerá os seus”. Claro que os não-surfistas acabam por se afastar, porque não são doidos. O resultado final é um usocapião dos surfistas sobre uma tranche de metade da área de banhos, que passa a ser a tradicional “zona dos surfistas”. Que remédio!

A religião surfista reclama para si grandes preocupações ecologistas, com o pretexto de “conviver com a natureza” ou outra balela do género. Na prática, a ecologia termina inúmeras vezes onde começa a falta de saco, nomeadamente sacos de plástico para levar da praia os grandes amontoados de lixo que sobram após a partida dos surfistas, constituídos por latas de cerveja e detritos orgânicos. Felizmente existem por vezes alguns sacristãos involutários que, desgostados com a nojeira, recolhem e levam até ao contentor os vestígios da vocação verde desses surfistas mais descuidados.

Nesta onda pretensamente ecológica surgem ainda os temores dramáticos e dramatizados com a “destruição” de uma onda, que é a única causa político-social que parece conseguir agregar os surfistas. Entende-se porquê: a destruição das ondas corresponde ao que nas outras religiões significa a pilhagem e incêndio de templos. 

Só que qualquer obra costeira a menos de quinze milhas de uma praia ocupada por surfistas, seja um castelo de areia ou um terminal petroquímico, é suspeita de poder destruir “a melhor onda da Europa”. Toda a onda em risco se torna invariavelmente “a melhor”, e logo “da Europa”! Pode ser na Madeira à segunda, em Carcavelos à terça, na Ericeira à quarta e na banheira do banho à quinta, mas nunca perde o adjectivo. Para inferir o risco de destruição, os surfistas não utilizam estudos científicos, modelações hidrodinâmicas ou outras minudências do género. Sabem de saber seguro que a onda desaparecerá “porque conhecem muito bem o mar”. Provavelmente absorvem as equações de Navier-Stokes por osmose, durante a hora e meia diária em que estão de molho à espera da onda possível.

Para quem os vê ao longe, caídos no charco, esta preocupação não faz sentido. A maior parte dos surfistas não se aguenta com ondas medianas, quanto mais com a “melhor da Europa”. Com as pequeninas é que eles se deviam preocupar. Glosando o antigo provérbio que Gil Vicente retratou na Farsa de Inês Pereira, “mais quero uma ondinha que me carregue, do que vagalhão que me derrube”.

domingo, setembro 04, 2011

Férias (IV) – Primeira leitura


Vou de férias com uma mala de livros. Não os leio todos. Já a banhos, vou ao monte e decido a próxima leitura em função da disposição do momento.

Normalmente acabo por alternar uma correnteza de livros não muito pesados, nem muito espessos. Este ano, fiquei-me por três apenas, mas dois mais para o calhamaço. O outro, o primeiro, já tinha ido na mala nos dois verões anteriores e não saíra dela. Achei injusto dar-lhe mais uma nega e acabei por pegar-lhe, apesar de quase sem vontade. Era o “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago.

Só tinha lido antes dois livros de Saramago e não ficara deslumbrado. O “Memorial do convento”, uma história original e interessante, tinha trechos mesmo muito bem escritos, por exemplo a pancadaria entre aleijados logo ao início, mas outros que eram longas e chatas travessias do deserto. Do “Levantado do chão” recordo um escrito sectário e de uma dor de corno classista, com exemplo nas crianças filhas dos latifundiários, essencialmente más, a trepidar de gozo com as judiarias que faziam aos trabalhadores rurais.

Já depois destas leituras veio o Nobel e, como muitos portugueses, senti aquele assomo de orgulho nacionalista algo idiota, como se a andorinha de um prémio trouxesse a primavera de um país mais culto, menos vedor do Big Brother e leitor da Nova Gente. Foi por essas alturas que comprei o meu exemplar do “Ensaio da Cegueira”, que acabou por ficar anos à minha espera.

Não sei dizer porque esperou tanto. Muitos dos livros que compro estão anos aguardando a sua hora. Neste caso, talvez me tenham desgostado o pedantismo pseudo-intelectual que se criou à volta do Nobel Saramago e a construção pelos média da personagem patriarcal e catedrática, remetendo periodicamente novos volumes desde a sua torre de Lanzarote para uma nação ingrata e algo bárbara que não o merecia e arrotando a sua sentença em entrevistas de jornal ilustradas por fotografias esfíngicas iluminadas por uma luz lateral. Talvez sentisse uma certa injustiça de o Nobel não ter ido para outros escritores que cá pra mim mereciam mais distinção, como Lobo Antunes ou Cardoso Pires. Talvez porque tivesse algumas dúvidas que o Saramago que o “establishment” idolatrava existisse, de asséptico que era, limpo que tinha sido do director Saramago que saneara jornalistas do DN por delito de opinião. Talvez me faltasse saco para o Saramago que motivava a polémica e depois se enfadava com ela.

Mas se há algo que as páginas me ensinaram foi que os livros não têm culpa de quem os escreve. E eu nem conhecia o senhor, só conhecia o produto. Por isso, dia um de Agosto, meti o dito ensaio no saco da praia.

A ideia de partida é brilhante: uma epidemia de cegueira, altamente contagiosa, afecta a humanidade. As autoridades em pânico começam por confinar os cegos a um antigo manicómio, mas rapidamente a doença atinge toda a humanidade. Tanto no espaço fechado do manicómio como, mais tarde, nas ruas da cidade, o livro descreve-nos um mundo em que a cegueira reduziu a humanidade à sua componente mais brutal e animalesca. Apenas um personagem escapa milagrosamente à maleita e atravessa o livro com olhos de ver.

Ao terminar a leitura, tinha uma certa vontade de dar um tiro na cabeça. A narração não poupa na maldade, nem na escatologia. Mas bem escrito. Apesar da fantasia, há plausibilidade. O estilo está mais personalizado que os dois anteriores que li. Aqui e ali ainda aflora o sectário de “Levantado do chão”, acolá aparece por vezes um outro momento de um gosto duvidoso. Mas tudo somado é uma boa obra: não sendo um dos livros da minha vida, deixou-me pelo menos a vontade de ler mais Saramago.

A parábola que nos conta Saramago é fundamentalmente pessimista sobre a essência da natureza humana: regressado ao estado de natureza, o homem não é um bom selvagem mas um lobo em guerra com os outros lobos. No entanto – e este é o lado positivo – existe uma “visão” que lhe permite evoluir desse estado e sem a qual ele regride. No livro essa visão é física, a dos olhos, mas claramente representa outras formas de visão como a sabedoria, a inteligência, a cultura, a ética, como quisermos.

Assim compreendido, “Ensaio sobre a cegueira” torna-se um bom manual para percebermos os tempos que correm, de Merkels e Murdochs, de “Tea Partys” e verdadeiros finlandeses, de lideranças fracas e influências fortes, em que a nossa sociedade parece ter deixado de ver o que há anos teria saltado à vista.

E se diferença existe, está em que hoje o problema não é de cegueira mas de falta de vista. O cego tem pelo menos a vantagem da consciência da sua condição. Aos nossos tempos apoquenta a falta de vista, uma miopia extrema, que nos devolve uma imagem distorcida, que tomamos irreflectidamente como realidade.

sábado, setembro 03, 2011

Férias (III) - O desvio

Este ano, o caminho usual para os Aivados estava em obras do tipo Santa Engrácia e o trânsito era desviado por uma estradinha que atravessava um bonito trecho de campo









Férias (II) - London not calling

 What a relief!
Feel like a soldier,
Look like a thief!

The Clash, in “Jimmy Jazz”

No meu arranque de férias, entre dentadas em fatias do pão fatiado alentejano, fofo e de travo ázimo, e o café que espirrava perturbado de uma máquina da Delta, inovação do ano do meu senhorio, fui sabendo pela leitura matinal do jornal que Londres estava a ferro e fogo ou outro dramalhão parecido. Nas fotos, um nevoeiro avermelhado envolvia silhuetas de prédios em chamas, já esventrados, as janelas uns quadrados brancos de luz sinistra. Ou então a silhueta negra dos polícias de choque, a metros de encapuçados, diante de lojas com as vitrines estilhaçadas. A faixa de Gaza em Clapham Junction.


“Finalmente começou a revolução”, suspirei entre goles no primeiro dia. Depois fui quotidianamente lendo mais e, apesar dos esforços dos “jornalistas” em escrever uma ode épica aos revoltosos desagradados com o desemprego e das entrevistas a soció”logos” explicando e desculpando uma juventude destruturada, desapontei-me. Aquilo não tinha pinta  revolucionária. Pelo contrário: foi o maior frete possível feito aos Camerons, às Merkels e aos Petit Nicolas deste mundo. Foi “status quo” no seu mais forte.



Voltemos uns anos atrás...


Na Inglaterra do século XIX, a delimitação de terrenos e a mecanização da agricultura criaram uma massa de trabalhadores rurais miseráveis que alimentou as necessidades de mão-de-obra da indústria nascente, através do “pesadelo voraz do trabalho industrial desregulado, mal pago e em condições escravas”, para citar Grayling.


Em 1830, uma rebelião surgiu no sul entre esse campesinato desasado. Um manifesto publicado no Sussex interrogava: “Não temos razão em queixar-nos de há tanto tempo ser obrigados a ir à labuta diária só com batatas nas sacolas e tendo como única bebida para matar a nossa sede a fria fonte; e ao retirar-nos para os nossos casebres ser recebidos pelo magros e meio-esfomeados filhos dos nossos corpos gastos pelo trabalho?” Os rebeldes controlaram totalmente algumas zonas, como Hampshire, atacando todas as quintas que tivessem debulhadoras, vistas como causa da sua condição, e exigindo contribuições para a causa “na casa de cada cavalheiro”.


A revolta foi contida à força. Nove cabecilhas foram enforcados, dependurados à vista do público. Centenas foram presos ou deportados. Um relatório da prisão de Winchester contava que “mulheres, irmãs, mães e filhos esperam diariamente à entrada, e o governador da prisão informou-me que as cenas que tem que testemunhar à hora do fecho das portas são de partir o coração”. Pois deviam ser, coitadinho do governador, com a boa consciência maçada pelas lágrimas dos andrajosos.


O mesmo relatório continuava, sobre a exibição dos cadáveres dos sentenciados: “Olhei para o pátio dos condenados e vi muitos deles chorando amargamente, alguns enterrando a cara nas roupas esfarrapadas, outros agitando as mãos convulsivamente e outros encostando-se para não cair às paredes do pátio e incapazes de olhar para cima.”


Fim de “flash-back”.



Aquilo em que os camponeses ingleses acima descritos estiveram envolvidos merece o nome de revolta: pessoas a quem o sistema político e económico não dava qualquer hipótese de dignamente proverem a si e aos seus revoltaram-se e atacaram tanto aquilo que julgavam (e até era) a causa da sua desdita como o lado poderoso da sociedade, os “cavalheiros”. O movimento supunha riscos enormes, como se viu pelas dramáticas consequências que sofreram.


Provavelmente a sua acção foi quixotesca e sem esperança. Sabemos hoje, vendo o curso da História, que o mundo não voltaria nunca ao tempo anterior às debulhadoras. Mas este detalhe não retira utilidade histórica ao que fizeram.  A legítima revolta é um dos motores de mudança da sociedade. Ao criar risco para o poder, motiva a reforma, cuja ausência pode provocar a revolução. Por isso, estes camponeses são figuras da história das liberdades que o Ocidente construiu e que neste momento não gozam, infelizmente, da melhor das saúdes. Tanto são que retirei a informação acima das páginas 175 e 176 de uma história das liberdades e direitos da autoria de um professor da Universidade de Londres que escreve frequentemente para o Economist e para o Financial Times, um homem mais na tradição “liberal” inglesa do que propriamente na daquilo que tradicionalmente chamamos “esquerda”. O mundo que veio depois deles não era o mesmo que dantes, mas era melhor que o do durante, em parte graças a eles.



Ora o regabofe londrino nada teve a ver com isto. A bandidagem em questão – porque disso se trata – não atingiu nem os símbolos do poder, nem as classes que dele beneficiam. Fraca com os fortes e forte com os fracos, preferiu atacar gratuitamente pessoas mais desmunidas mas mais a jeito, muitas vezes com um comportamento racista, e adquirir telões da Sony, sapatilhas da Nike e “lingerie” da Victoria’s Secret a preços de saldo: zero libras.


Espero não estar enganado ao dizer que nenhuma história das liberdades escrita em 2200 vai dedicar uma linha a estes imbecis que atacaram lojinhas de emigrantes e roubaram bens de uma ostentação medíocre.  A menos que seja para explicar que permitiram uma excelente justificação para o reforço do securitarismo e o isolamento de quem eventualmente quisesse revoltar-se porque tinha razões para isso.


Comparar o gamanço desorganizado de iPhones com a rebelião de quem tinha fome ou de quem quer mudar alguma coisa na sua falta de perspectivas para além de estúpido é falta de respeito. Voltando ao verso dos Clash referido em epígrafe, o rebelde até pode ter ar de ladrão mas tem que sentir-se soldado, servindo uma causa.