domingo, setembro 04, 2011

Férias (IV) – Primeira leitura


Vou de férias com uma mala de livros. Não os leio todos. Já a banhos, vou ao monte e decido a próxima leitura em função da disposição do momento.

Normalmente acabo por alternar uma correnteza de livros não muito pesados, nem muito espessos. Este ano, fiquei-me por três apenas, mas dois mais para o calhamaço. O outro, o primeiro, já tinha ido na mala nos dois verões anteriores e não saíra dela. Achei injusto dar-lhe mais uma nega e acabei por pegar-lhe, apesar de quase sem vontade. Era o “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago.

Só tinha lido antes dois livros de Saramago e não ficara deslumbrado. O “Memorial do convento”, uma história original e interessante, tinha trechos mesmo muito bem escritos, por exemplo a pancadaria entre aleijados logo ao início, mas outros que eram longas e chatas travessias do deserto. Do “Levantado do chão” recordo um escrito sectário e de uma dor de corno classista, com exemplo nas crianças filhas dos latifundiários, essencialmente más, a trepidar de gozo com as judiarias que faziam aos trabalhadores rurais.

Já depois destas leituras veio o Nobel e, como muitos portugueses, senti aquele assomo de orgulho nacionalista algo idiota, como se a andorinha de um prémio trouxesse a primavera de um país mais culto, menos vedor do Big Brother e leitor da Nova Gente. Foi por essas alturas que comprei o meu exemplar do “Ensaio da Cegueira”, que acabou por ficar anos à minha espera.

Não sei dizer porque esperou tanto. Muitos dos livros que compro estão anos aguardando a sua hora. Neste caso, talvez me tenham desgostado o pedantismo pseudo-intelectual que se criou à volta do Nobel Saramago e a construção pelos média da personagem patriarcal e catedrática, remetendo periodicamente novos volumes desde a sua torre de Lanzarote para uma nação ingrata e algo bárbara que não o merecia e arrotando a sua sentença em entrevistas de jornal ilustradas por fotografias esfíngicas iluminadas por uma luz lateral. Talvez sentisse uma certa injustiça de o Nobel não ter ido para outros escritores que cá pra mim mereciam mais distinção, como Lobo Antunes ou Cardoso Pires. Talvez porque tivesse algumas dúvidas que o Saramago que o “establishment” idolatrava existisse, de asséptico que era, limpo que tinha sido do director Saramago que saneara jornalistas do DN por delito de opinião. Talvez me faltasse saco para o Saramago que motivava a polémica e depois se enfadava com ela.

Mas se há algo que as páginas me ensinaram foi que os livros não têm culpa de quem os escreve. E eu nem conhecia o senhor, só conhecia o produto. Por isso, dia um de Agosto, meti o dito ensaio no saco da praia.

A ideia de partida é brilhante: uma epidemia de cegueira, altamente contagiosa, afecta a humanidade. As autoridades em pânico começam por confinar os cegos a um antigo manicómio, mas rapidamente a doença atinge toda a humanidade. Tanto no espaço fechado do manicómio como, mais tarde, nas ruas da cidade, o livro descreve-nos um mundo em que a cegueira reduziu a humanidade à sua componente mais brutal e animalesca. Apenas um personagem escapa milagrosamente à maleita e atravessa o livro com olhos de ver.

Ao terminar a leitura, tinha uma certa vontade de dar um tiro na cabeça. A narração não poupa na maldade, nem na escatologia. Mas bem escrito. Apesar da fantasia, há plausibilidade. O estilo está mais personalizado que os dois anteriores que li. Aqui e ali ainda aflora o sectário de “Levantado do chão”, acolá aparece por vezes um outro momento de um gosto duvidoso. Mas tudo somado é uma boa obra: não sendo um dos livros da minha vida, deixou-me pelo menos a vontade de ler mais Saramago.

A parábola que nos conta Saramago é fundamentalmente pessimista sobre a essência da natureza humana: regressado ao estado de natureza, o homem não é um bom selvagem mas um lobo em guerra com os outros lobos. No entanto – e este é o lado positivo – existe uma “visão” que lhe permite evoluir desse estado e sem a qual ele regride. No livro essa visão é física, a dos olhos, mas claramente representa outras formas de visão como a sabedoria, a inteligência, a cultura, a ética, como quisermos.

Assim compreendido, “Ensaio sobre a cegueira” torna-se um bom manual para percebermos os tempos que correm, de Merkels e Murdochs, de “Tea Partys” e verdadeiros finlandeses, de lideranças fracas e influências fortes, em que a nossa sociedade parece ter deixado de ver o que há anos teria saltado à vista.

E se diferença existe, está em que hoje o problema não é de cegueira mas de falta de vista. O cego tem pelo menos a vantagem da consciência da sua condição. Aos nossos tempos apoquenta a falta de vista, uma miopia extrema, que nos devolve uma imagem distorcida, que tomamos irreflectidamente como realidade.

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