domingo, setembro 18, 2011

Férias (V) – Surfismo

Nas praias das minhas férias, processionários nas dunas, as pranchas a tiracolo ou amparadas pelo braço, vão os surfistas.

O surfismo é uma religião que nasceu nos EUA em meados do século XX e se estabeleceu nas duas últimas décadas do mesmo século na orla marítima portuguesa e noutras zonas costeiras da Europa.

Os mais distraídos poderiam pensar, cingindo-se às aparências, que o surfista pratica um desporto, o surfe (que é como aquela coisa se escreve em português). Nada de mais míope. O surfista adere a um credo, com os seus ritos, os seus sacramentos e as suas hieraquias, que lhe orienta o modo como veste, o modo como fala, o modo como pensa e até o modo como vive. Na esplanada do café, em férias, dificilmente topamos ao nosso lado o andebolista amador ou o amante da maratona. Fora do recinto ou da pista, despido o equipamento, tornam-se pessoas como as outras, misturando-se na multidão. Ao contrário, os surfistas da vizinhança não nos escaparão certamente, pela carinha e pelos tiques. E então se abrirem a boca para falar, nem se fala.

Poder-se-ia até estabelecer um paralelo entre a religião surfista e a sua homófona sufista, a versão mística do islamismo. Os estudiosos do sufismo definem um dos seus objectivos como o afastamento de tudo menos de Deus. O surfismo respira a mesma costela extática, levando ao afastamento de tudo o que não leve à boa onda. O sufista manifesta o seu transe rodopiando sobre si próprio, como se vê nos derviches. O surfista fá-lo bamboleando o rabo em cima de uma tábua de espuma de poliuretano.

  
O rito surfista começa na praia, acartando as pranchas do carro para o areal. Estas são manufacturadas por uns tipos chamados “shapers” utilizando espuma chamada “foam” e colocando-se para estabilidade umas alhetas que se chamam “fins”. Chegados ao destino, enceram a tábua (que se chama “board”) com uma cera (que se chama “wax”) . Trazem para lanchar uns pães chamados “breads” nuns sacos chamados “bags” que acompanham com umas cervejas chamadas “beers”... Bem, esta última frase já será exagero meu, mas tal como o latim se tornou a língua do catolicismo, o inglês é mesmo a do surfismo, presumivelmente para dar a pinta cosmopolita que pode sempre fazer falta a quem não a tem.

Durante o enceramento da prancha, começa-se a distinguir a hierarquia. O surfista experiente esquece-se sempre da cera, inquirindo diletantemente junto dos demais: “tens wax?”. Normalmente há sempre um surfista mais maçarico, que conseguiu cravar aos pais dinheiro para a parafernália toda, que se apressa a ceder a sua ao graduado. Este esquema começa a funcionar pior à medida que os diversos surfistas da praia vão ganhando experiência e logo começando a fazer valer os seus direitos, esquecendo também a sua “wax”, o que pode provocar grandes romarias de surfistas desencerados a rondar-se uns aos outros em demanda da cerúlea substâcia.

Preparada a prancha, o surfista coloca os paramentos. Estes consistem num fato de material borrachento, negro nas pernas e na maior parte do corpo. O fato veste-se, sobretudo nas pernas, com a mesma dificuldade aparente com que um senegalês colocaria um preservativo de dimensões inglesas. Cada centímetro de coxa é vencido aos sacões, os pelos arrepelados, com um esgar de dor na face. Não raras vezes, sobretudo no despir, precisam da ajuda dos companheiros. Colocada finalmente a vestimenta, fecham o fecho-éclair das costas uns aos outros como senhoras em dia de baile.

Esta volúpia em meter um revestimento de borracha preta quando podem ferver quarenta graus à sombra parecerá um pouco “sado-maso”, mas não. O fato térmico tem real utilidade porque a principal actividade do surfista é estar parado dentro de água. Com efeito, o surfista, entrado no oceano, nada de bruços até à zona onde as vagas iniciam o seu encruamento e aguarda, deitado sobre a prancha ou a cavalo nela, esperando a onda ideal como se espera um Godot dos mares. Na praia dos Aivados, onde testemunhei os factos que aqui narro, é ver ao longe a linha que se forma de cabecinhas flutuantes, subindo e descendo com a ondulação durante horas. De vez em quando, lá há um audaz que se afoita a empoleirar numa onda mais vincada para logo se baldar da tábua abaixo uns metros mais à frente, quando não imediatamente. Poderá surpreender, mas tal parece ser satisfatório. Ao regressar a terra, a prancha debaixo do braço, ouviremos o surfista ensopado e sorridente a dizer ao confrade que vai entrar:

- Hoje tão muito boas. Consegui fazer duas ondas, “man”!

Estranho porque num jogo de futebol os comentadores comentarão, sobre um jogador que só tocou duas vezes na bola durante hora e meia, que “passou completamente ao lado do jogo”. Ao invés, no surfismo, duas ondas manhosas em noventa minutos e é a glória total e absoluta. 
Fora de água, em ambiente urbano, o surfista arrasta os pés e socializa quando encontra outros que tal. Os surfistas cumprimentam-se com um aperto de mão especial, de braço erguido, batendo as palmas com força. Como concebem com dificuldade que o mundo não seja todo composto por surfistas, tendem a alargar esse cumprimento brejeiro ao resto da população, fazendo alguma figura de urso aqui e ali, baixando a pata desengonçadamente quando alguém lhes estica um mais normal passou-bem. 

Tal como a das beatas que se ajuntam no adro, a conversa típica dos surfistas cobre uma grande amplitude de temas. Versará possivelmente o surfe, mas em alternativa também o surfe, podendo ainda acontecer por vezes que se fale de surfe. Para os leigos que os ouvem, a discussão tenderá a parecer de mentecaptos, mas isso deve-se apenas às trevas em que vivem esses leigos, ignorantes que são da sapiência que se esconde por trás daquele discurso hermético de ladaínha.

Uma entidade mítica muito referida, provavelmente deus maior do panteão surfista, chama-se “swell”. O “swell” manifesta-se intermitentemente (nem sempre “está”) mas quando “está” vem sempre “grande” ou, mais frequentemente, “ganda”:

- Tive na praia das caracoletas e tava um “ganda swell”, “man”!

O entusiasmo reverente com que é mencionado contrasta com o desapontamento evidente nas caras dos surfistas quando, chegados à praia das caracoletas após uma penitência de quinze quilómetros de condução, guiando de pescoço a quarenta e cinco graus por causa da prancha entalada entre o vidro de trás do carro e o pára-brisas, verificam que o grande “swell” afinal não “está”. A ausência de “swell” equivale a uma deserção do mundo por Deus, uma vez que impede a prática. A esta praga do Egipto surfista dá-se o nome de mar “flat”. Que suponho que queira significar plano. “Probably”.

Outros entes recorrentes, provavelmente de menor patente, são os “tubos”. Os “tubos” podem aparecer – ou não – quando o “swell está”. Pelo que entendo, são uma espécie de anjos que acompanham a divindade. A prova que os tubos têm uma importância secundária reside no facto de o seu nome ser português, idioma obviamente pouco fresco – perdão – pouco “cool”. A especificidade teológica dos tubos vem de que não só “estão”, como se “fazem” (mas só a partir de um certo diâmetro; dizem os surfistas que “fiz um ganda tubo”, nunca um “mero tubo” ou um “pequeno tubo”).

Se o comportamento do surfista seco é algo gregário, na água torna-se agressivo, podendo chegar a perigoso. Infestam largos troços de praia aparentemente sem compreender que o bico de uma prancha espetado num crânio humano pode causar perturbações graves nos sinais vitais. Ziguezagueiam no limite entre surfistas caídos e banhistas inocentes com a atitude impúdica de Arnaud Amaury, legado do papa na expedição de massacre dos cátaros em 1209: “Matem-nos a todos. Deus reconhecerá os seus”. Claro que os não-surfistas acabam por se afastar, porque não são doidos. O resultado final é um usocapião dos surfistas sobre uma tranche de metade da área de banhos, que passa a ser a tradicional “zona dos surfistas”. Que remédio!

A religião surfista reclama para si grandes preocupações ecologistas, com o pretexto de “conviver com a natureza” ou outra balela do género. Na prática, a ecologia termina inúmeras vezes onde começa a falta de saco, nomeadamente sacos de plástico para levar da praia os grandes amontoados de lixo que sobram após a partida dos surfistas, constituídos por latas de cerveja e detritos orgânicos. Felizmente existem por vezes alguns sacristãos involutários que, desgostados com a nojeira, recolhem e levam até ao contentor os vestígios da vocação verde desses surfistas mais descuidados.

Nesta onda pretensamente ecológica surgem ainda os temores dramáticos e dramatizados com a “destruição” de uma onda, que é a única causa político-social que parece conseguir agregar os surfistas. Entende-se porquê: a destruição das ondas corresponde ao que nas outras religiões significa a pilhagem e incêndio de templos. 

Só que qualquer obra costeira a menos de quinze milhas de uma praia ocupada por surfistas, seja um castelo de areia ou um terminal petroquímico, é suspeita de poder destruir “a melhor onda da Europa”. Toda a onda em risco se torna invariavelmente “a melhor”, e logo “da Europa”! Pode ser na Madeira à segunda, em Carcavelos à terça, na Ericeira à quarta e na banheira do banho à quinta, mas nunca perde o adjectivo. Para inferir o risco de destruição, os surfistas não utilizam estudos científicos, modelações hidrodinâmicas ou outras minudências do género. Sabem de saber seguro que a onda desaparecerá “porque conhecem muito bem o mar”. Provavelmente absorvem as equações de Navier-Stokes por osmose, durante a hora e meia diária em que estão de molho à espera da onda possível.

Para quem os vê ao longe, caídos no charco, esta preocupação não faz sentido. A maior parte dos surfistas não se aguenta com ondas medianas, quanto mais com a “melhor da Europa”. Com as pequeninas é que eles se deviam preocupar. Glosando o antigo provérbio que Gil Vicente retratou na Farsa de Inês Pereira, “mais quero uma ondinha que me carregue, do que vagalhão que me derrube”.

1 comentário:

Cristina Rodo disse...

lololololololololol
Muito bom! ;)
Mas cheira-me a que vais levar tanto nas oreeelhaaas... lol

PS: Eles a mim só me fazem lembrar focas, quando os vejo na água... lol