sábado, setembro 03, 2011

Férias (II) - London not calling

 What a relief!
Feel like a soldier,
Look like a thief!

The Clash, in “Jimmy Jazz”

No meu arranque de férias, entre dentadas em fatias do pão fatiado alentejano, fofo e de travo ázimo, e o café que espirrava perturbado de uma máquina da Delta, inovação do ano do meu senhorio, fui sabendo pela leitura matinal do jornal que Londres estava a ferro e fogo ou outro dramalhão parecido. Nas fotos, um nevoeiro avermelhado envolvia silhuetas de prédios em chamas, já esventrados, as janelas uns quadrados brancos de luz sinistra. Ou então a silhueta negra dos polícias de choque, a metros de encapuçados, diante de lojas com as vitrines estilhaçadas. A faixa de Gaza em Clapham Junction.


“Finalmente começou a revolução”, suspirei entre goles no primeiro dia. Depois fui quotidianamente lendo mais e, apesar dos esforços dos “jornalistas” em escrever uma ode épica aos revoltosos desagradados com o desemprego e das entrevistas a soció”logos” explicando e desculpando uma juventude destruturada, desapontei-me. Aquilo não tinha pinta  revolucionária. Pelo contrário: foi o maior frete possível feito aos Camerons, às Merkels e aos Petit Nicolas deste mundo. Foi “status quo” no seu mais forte.



Voltemos uns anos atrás...


Na Inglaterra do século XIX, a delimitação de terrenos e a mecanização da agricultura criaram uma massa de trabalhadores rurais miseráveis que alimentou as necessidades de mão-de-obra da indústria nascente, através do “pesadelo voraz do trabalho industrial desregulado, mal pago e em condições escravas”, para citar Grayling.


Em 1830, uma rebelião surgiu no sul entre esse campesinato desasado. Um manifesto publicado no Sussex interrogava: “Não temos razão em queixar-nos de há tanto tempo ser obrigados a ir à labuta diária só com batatas nas sacolas e tendo como única bebida para matar a nossa sede a fria fonte; e ao retirar-nos para os nossos casebres ser recebidos pelo magros e meio-esfomeados filhos dos nossos corpos gastos pelo trabalho?” Os rebeldes controlaram totalmente algumas zonas, como Hampshire, atacando todas as quintas que tivessem debulhadoras, vistas como causa da sua condição, e exigindo contribuições para a causa “na casa de cada cavalheiro”.


A revolta foi contida à força. Nove cabecilhas foram enforcados, dependurados à vista do público. Centenas foram presos ou deportados. Um relatório da prisão de Winchester contava que “mulheres, irmãs, mães e filhos esperam diariamente à entrada, e o governador da prisão informou-me que as cenas que tem que testemunhar à hora do fecho das portas são de partir o coração”. Pois deviam ser, coitadinho do governador, com a boa consciência maçada pelas lágrimas dos andrajosos.


O mesmo relatório continuava, sobre a exibição dos cadáveres dos sentenciados: “Olhei para o pátio dos condenados e vi muitos deles chorando amargamente, alguns enterrando a cara nas roupas esfarrapadas, outros agitando as mãos convulsivamente e outros encostando-se para não cair às paredes do pátio e incapazes de olhar para cima.”


Fim de “flash-back”.



Aquilo em que os camponeses ingleses acima descritos estiveram envolvidos merece o nome de revolta: pessoas a quem o sistema político e económico não dava qualquer hipótese de dignamente proverem a si e aos seus revoltaram-se e atacaram tanto aquilo que julgavam (e até era) a causa da sua desdita como o lado poderoso da sociedade, os “cavalheiros”. O movimento supunha riscos enormes, como se viu pelas dramáticas consequências que sofreram.


Provavelmente a sua acção foi quixotesca e sem esperança. Sabemos hoje, vendo o curso da História, que o mundo não voltaria nunca ao tempo anterior às debulhadoras. Mas este detalhe não retira utilidade histórica ao que fizeram.  A legítima revolta é um dos motores de mudança da sociedade. Ao criar risco para o poder, motiva a reforma, cuja ausência pode provocar a revolução. Por isso, estes camponeses são figuras da história das liberdades que o Ocidente construiu e que neste momento não gozam, infelizmente, da melhor das saúdes. Tanto são que retirei a informação acima das páginas 175 e 176 de uma história das liberdades e direitos da autoria de um professor da Universidade de Londres que escreve frequentemente para o Economist e para o Financial Times, um homem mais na tradição “liberal” inglesa do que propriamente na daquilo que tradicionalmente chamamos “esquerda”. O mundo que veio depois deles não era o mesmo que dantes, mas era melhor que o do durante, em parte graças a eles.



Ora o regabofe londrino nada teve a ver com isto. A bandidagem em questão – porque disso se trata – não atingiu nem os símbolos do poder, nem as classes que dele beneficiam. Fraca com os fortes e forte com os fracos, preferiu atacar gratuitamente pessoas mais desmunidas mas mais a jeito, muitas vezes com um comportamento racista, e adquirir telões da Sony, sapatilhas da Nike e “lingerie” da Victoria’s Secret a preços de saldo: zero libras.


Espero não estar enganado ao dizer que nenhuma história das liberdades escrita em 2200 vai dedicar uma linha a estes imbecis que atacaram lojinhas de emigrantes e roubaram bens de uma ostentação medíocre.  A menos que seja para explicar que permitiram uma excelente justificação para o reforço do securitarismo e o isolamento de quem eventualmente quisesse revoltar-se porque tinha razões para isso.


Comparar o gamanço desorganizado de iPhones com a rebelião de quem tinha fome ou de quem quer mudar alguma coisa na sua falta de perspectivas para além de estúpido é falta de respeito. Voltando ao verso dos Clash referido em epígrafe, o rebelde até pode ter ar de ladrão mas tem que sentir-se soldado, servindo uma causa.

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