Tinha prometido a mim próprio não comprar mais livros enquanto não desse um bom avanço no monte que lá está em casa por abrir. Dantes pensava ler tudo o que sobrasse quando me reformasse, mas como nestes tempos “troikaneiros” a idade da reforma se vai afastando de nós de cada vez que chegamos próximo, como a tartaruga do Zenão de Eleia, esse plano gorou-se. Para não ter que voltar do além para acabar as leituras em dívida, com susto dos que cá ficarem, decidi acabar com as aquisições.
Mas no fim-de-semanada passado, a braços com as compras da quadra, entrei numa livraria e fraquejei: vieram-me acidentalmente agarrados aos coutos cinco pequenos volumes que tratei de despachar imediatamente, numa lógica de “last in,first out”, apressando-me a esconder da minha má consciência o corpo do delito.

Do que me lembro de leituras diversas, para se escrever sobre sexo sem dar ar de parvo só há duas vias: ou o implícito ou o barrasco. Entre estes dois extremos, entre a frase singela que sugere o acto e passa ao assunto seguinte e o arrazoado de palavreado forte e ordinário há um vazio inacessível, como o espaço entre duas orbitais do átomo. O meu pipi, seja ele quem fôr, percebeu que tinha que dar esse salto quântico para fugir àquela imagética melosa e falsamente sensível, em que o acto sexual se consuma com o auxílio de arpões divinos, rosas em botão, êxtases sublimes e outras hipérboles manhosas do género. Com o meu pipi, não há cá disso. Seguindo uma tradição portuguesa que vem de longe e culmina no Elmano Sadino, arma-se do exagero brejeiro e de uma improvável fineza de escrita e é só rir. E por esse efeito até se ajusta a estes momentos adventícios, supostos ser de alegria.

Lembrei-me disso ontem quando parei num semáforo no topo da Marquês da Fronteira, a caminho de umas compras tardias. À porta do Estabelecimento Prisional de Lisboa, uma fila de umas dezenas de pessoas, maioritariamente mulheres e crianças, esperava ao frio de Dezembro pela hora da visita. Os adultos aguardavam quedos, atabafados de casacos, as mãos pendentes segurando sacos garridos e prendas berrantes nos seus papéis de embrulho. As crianças cirandavam à volta. A porta, essa, mantinha-se fechada, emperrada pelos regulamentos que hão-de determinar uma hora de entrada, hora que é sempre à mesma hora mesmo em dia de paz e amor, mesmo em dia em que está frio lá fora e lá fora crianças correm excitadas com a melhor prenda que vão ter: encontrar-se finalmente com um pai que se encontra preso. O semáforo abriu e eu arranquei, continuando sem saber se aquilo não era Natal ou se o Natal era afinal aquilo.

No final, Rancière zurze no actual estado de coisas na Europa, concluindo que a oligarquia desavergonhada que governa hoje o Ocidente está a perder quaisquer travões democráticos que ainda mantivesse. E como aqui reside a causa primeira de muitas consoadas tristes por essa Europa fora, este até poderá ser um volume de leitura apropriada nesta quadra natalícia.
E foi neste livro, na voz do seu guitarrista Mick Jones, o que passou a infância mais difícil, com pais violentos que o deixariam aos oito anos a cargo de uma avó, que encontrei o pensamento de Natal deste Natal. É quando ele recorda essa avó, a quem chama carinhosamente “my nan”:
- She nurtured me, rescued me from all the fighting and stuff when I was really young, and protected me as much as she could and she never questioned it.
De facto, a generosidade não está apenas em dar, reside sobretudo em não esperar nada em troca.
E vendo com atenção, os Clash jogam bem com o espírito da época natalícia, festa que celebra o nascimento de um militante. Razão para considerar que o vídeo abaixo passa bem por um cântico de Natal.