sábado, junho 12, 2010

Uma senhora


Hoje calha-me dizer bem. Para variar.


Escrevi aqui há tempos que não há actualmente em Portugal classe mais reles que a dos jornalistas. Mantenho. Mas dificilmente se generaliza sem se ser injusto, por vezes tremendamente. Encontram-se excepções. Existirão taxistas polidos, autarcas sem rotundas e benfiquistas com uma orientação sexual tradicional.


Exceptuando então, venho falar-vos de uma enorme jornalista.


Acabei de ler dois trabalhos de Alexandra Lucas Coelho no Público de ontem, escritos na África do Sul. Uma pequena crónica sobre Neil Aggett, um jovem médico branco que no fim dos anos setenta foi trabalhar para um hospital de negros no Soweto, se tornou activista e morreu sob tortura nas prisões do regime segregacionista com vinte e oito anos apenas. Cuja existência eu desconhecia e cujo exemplo em boa hora ela reavivou. E uma reportagem mais extensa sobre a baixa de Joanesburgo, uma área pesada e violenta, outrora nobre mas hoje desertada pelos brancos e pelos bancos.


Enquanto as notícias que as dúzias de enviados especiais ao Mundial nos remetem hoje em dia desde a África do Sul se resumem integralmente a banalidades ao som de vuvuzelas, ilustradas por imagens gravadas em restaurantes de madeirenses, com orgasmos ligeiros sempre que avistam uma bandeira das quinas nalgum recanto e hossanas à popularidade dos portugueses por esse mundo fora, Alexandra Lucas Coelho procura a memória do que foi um país dividido pelo ódio, um ódio função da concentração na derme de uma molécula chamada melanina, um ódio que expulsou o advogado Gandhi do comboio por ter melanina a mais.


Enquanto a curiosidade dos assim chamados repórteres da SIC e da RTP se foca no “fait-divers” dos mil e quinhentos euros roubados nos quartos de jogadores gregos, que lhes devem fazer uma falta danada, ou se resume a entrevistar mexicanos de sombrero a garantir que o México vai ganhar e ingleses de bojeca em pulso a augurar a vitória da Inglaterra, Alexandra Lucas Coelho procura, em bairros em que outros teriam medo de entrar, a essência do país que sucedeu ao “apartheid”.


Comecei a acompanhar os seus escritos quando ela foi residir para Israel, onde é correspondente do jornal Público. As suas notícias sobre acontecimentos políticos notórios têm rigor, eficácia, perspectiva, um visível conhecimento dos meandros da política local, enfim, aquilo que se espera de um correspondente que se veja. Mas onde ela excele é nas suas crónicas sobre as pessoas, a vida, os dois lados de um mundo dividido por muros de betão e de inimizade. Num canto do planeta em que com facilidade se pode deslizar para o sectarismo, Alexandra Lucas Coelho parece imune. Com pinceladas de forte humanidade, em momentos de guerra ou nos intervalos de paz, descreve-nos o que vê de parte e doutra: pessoas, com sentimentos, com dores, com raivas, com alegrias e com esperanças. Com ela, a máxima de Protágoras torna-se um programa de acção: o homem é a medida de todas as coisas. Fá-lo com árabes e judeus, israelitas ou palestinianos, de forma equilibrada mas não sem tomar partido, que o jornalismo não tem que ser asséptico. O partido que toma é o da verdade e da decência, da simpatia pela liberdade e da repulsa pela opressão. E consegue-o de uma forma suave, sem maniqueísmos, plena de respeito, dando-se como um espelho que reflecte a realidade, diferente, de diferente gente.


Alexandra Lucas Coelho possui outra virtude que vai rareando na imprensa que leio e mesmo na que ouço. Trata muito bem o português. Hoje, pega-se num jornal ou ouve-se um noticiário e leva-se com um arrazoado de anglicismos, fruto das traduções apressadas dos despachos da Reuters, onde a concordância do sujeito com o verbo é uma feliz coincidência e não mais uma obrigatoriedade natural. Quem não ouviu já na rádio que as acções da PT seguem a subir? Seguem? Para onde? Para Espanha, se calhar, de onde veio esse castelhanismo que infectou o jornalismo económico. Às vezes, vendo o que esses marrecos escrevinham, parece inacreditável que fulanos como Hemingway, Camus ou o próprio Eça tenham partilhado a mesma profissão. Mas com ela não. Dá gosto ler. Usa uma escrita depurada, figurativa, nada pretensiosa, factual mas tantas vezes tocante.


Conheci muito brevemente Alexandra Lucas Coelho há uns anos, numa festa de aniversário de uma amiga comum, passada num fim-de-semana na Quinta da Matinha, um turismo rural isolado na serra alentejana junto ao Cercal, onde o céu estrelado não consente que o nosso olhar desça e onde o Alfredo nos mima com esperadas e inesperadas proezas gastronómicas. Tenho uma memória leve de uma pessoa simples e discreta, nas antípodas do espalhafatoso que caracteriza alguns escribas menores da praça. O que aumenta ainda mais a minha admiração por alguém que tranquilamente nos traz histórias de sítios em que muitos de nós recearíamos viver ou meramente passear.


Nos dois artigos sobre a África do Sul que lhe li ontem, sem que tal alguma vez seja referido explicitamente, percebe-se que o “apartheid” não morreu ainda, modificou-se apenas. Já não manda, mas ainda reina um bocadinho, como é normal na sequência de longas ditaduras. Com o salazarismo passa-se o mesmo. O caminho a percorrer pelos sul-africanos tem pois muita quilometragem pela frente, mas vale a pena ser percorrido. No último parágrafo da sua crónica sobre Neil Aggett, Alexandra relembra a frase que está gravada à saída do Museu do Apartheid: “Pense no que aconteceu e no que virá. E depois saia em liberdade.” Muito bem escolhida.



Nota - Não sei quanto tempo estará “on-line”, mas eis o “link” para um dos artigos referidos:


http://jornal.publico.pt/noticia/11-06-2010/quem-tem-medo--da-baixa-de-joanesburgo-19582722.htm

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