quarta-feira, abril 28, 2010

Dia de raiva

Passei o dia de ontem com um nó na garganta.


Na noite anterior, uma notícia nos “sites” dos jornais anunciava a morte de um jovem português numa discoteca em Londres, frequentada por famosos, como essa ralé escriba lhes gosta de chamar. A notícia não era a morte de um jovem, mas o incómodo dos famosos, como o distintíssimo Wayne Rooney, que se não tivesse bons pezinhos andaria pela estiva no porto de Liverpool.


Em minha casa, no entanto, o rapaz tinha um nome e uma cara. Frequentava a escola dos meus filhos. Brincara com um deles em pequeno. Sorria, com poucos aninhos, em fotografias dos nossos álbuns. Conhecíamos a mãe.


Os jornalistas aproveitaram para especular quando não para afirmar o que não sabiam nem podiam saber, para apimentar a notícia. Não há hoje classe mais reles que a dos jornalistas. Assalariados ao serviço do volume de vendas dos seus patrões, comprazem-se na sua necessidade compulsiva de procurar o esterco para remexer e de inventá-lo quando não o encontram. Necessidade que caracteriza e estigmatiza a classe. Verdade, ética, pudor e pundonor pouco lhes dizem. Desmandam-se, insensíveis à dor que a sua insensibilidade provoca. Não percebem, possivelmente porque não conseguem.


Nos “sites”, as novas atraíram os comentários como abutres, geralmente disparates moralistas e ignorantes, escondidos sob essa moderna forma de cobardia a que se chama “nick”.


Será que perdemos todos a capacidade de dizer: morreu um jovem, morremos nós também um pouco? De nos condoer um segundo porque uma mãe, um pai, algures, sofrem o último dos sofrimentos? De teclar, já que temos que teclar, uma homenagem, uns pêsames e não uma barbaridade ignorante? Em que monstros nos transformámos?


Sei que é a raiva a falar mas, em dias destes, parece-me melhor que venha o meteorito, o vírus fulminante ou o inverno nuclear que nos varra a todos deste planeta e que se recomece de novo, com outra espécie que connosco já não vale a pena.


Sei que é a angústia a falar mas em dias destes constato a prova provada que o Deus justo e misericordioso de que alguns tanto falam simplesmente não existe, como os factos demonstram. Quanto muito uma divindade caótica, um Baal fenício, exigindo vítimas diante das suas imagens de bronze. Ou mais certamente nada senão uma existência breve, ténue, improvável e ilógica.


Mas se por acaso estás em algum sítio que me ouças, sabe que sinto uma pena imensa. Fazes falta: não só aos teus como a este mundo, que não se pode dar ao luxo de desperdiçar uma só flor da sua juventude, a única que pode fazer algo por ele que nós, os cotas, já deixámos escapar a oportunidade que nos foi dada. Mesmo sem te ter visto nos últimos anos, ter-te-ei sempre na minha memória, com o sorriso maroto daquela foto no jardim zoológico, terias tu quatro ou cinco anos – lembras-te? – sentado junto ao teu amigo que dorme agora no quarto ao lado deste onde escrevo. Descansa tu também, em paz.


E à tua mãe, um beijinho de solidariedade, de apoio, que poucas mais palavras fazem sentido.


1 comentário:

Mac disse...

Quando escrevem uma notícia, desumanizam-se, esquecem-se que por detrás de cada perda há um pai, uma mãe, irmãos, avós, por vezes filhos, marido, ou mulher. Esquecem-se que as perdas são irreparáveis e que escrevem sobre pessoas, não de coisas, situações, ou factos.

Um grande beijinho para ti :)