domingo, junho 06, 2010

Isto ainda vai ser engraçado…

Na sexta saiu no Público um artigo sobre a presente crise de Joschka Fisher, ex-dirigente dos Verdes alemães e ex-ministro dos negócios estrangeiros do governo Schroeder. O escrito de Fischer é muito interessante por abordar a situação que vivemos numa óptica essencialmente política e histórica, muito diferente da histeria microeconómica e microcéfala que nos tem sido servida em doses cavalares nos jornais, na têvê e nas declarações de quem está encarregue de mandar nisto.

Fischer faz notar que há sessenta anos uma crise destas teria o potencial de gerar uma guerra mundial, coisa que hoje, com o equilíbrio do terror nuclear e a maior afluência das sociedades ocidentais, será muito menos provável. Mas tal não impede que a situação gere tensões sociais que são potencialmente transformadoras, isto se não quisermos usar um termo mais conotado, por exemplo “perigosas”. Fischer inquieta-se também com o facto de os actuais dirigentes mundiais ainda não terem percebido o que está em jogo – concordo – e alerta para que nos preocupemos sobre onde se irão precipitar as “energias libertadas por esta crise”, porque, como ele diz, “não há dúvida que elas vão descarregar-se em algum lado”. Fischer não sabe bem onde, mas pelo menos sabe História, virtude que não possuem os arautos da desgraça que hoje pululam na esfera mediática e de que são exemplos acabados o Roubini, a nível internacional, e o João Duque, para consumo interno.

Estes são apenas dois de muitos, porque esta crise não se limita a económica e financeira: também é uma crise de continência verbal. Não há pixote que não queira botar faladura. O Roubini, até recentemente obscuro professor universitário em Nova Iorque, tornou-se célebre por aparentemente ter previsto a derrocada do “sub-prime” de 2008. Não causa grande admiração: os académicos económicos em todo o mundo vão produzindo “papers” para subir na carreira onde prevêem tudo e mais alguma coisa, com igual incerteza. Há sempre a possibilidade de algum coincidir com a realidade, exactamente pela mesma razão que há gente a quem sai o Euromilhões: por paia. Só que agora não há quem o cale. Roubini consegue dizer em dois dias seguidos uma coisa e o seu contrário, com igual desfaçatez e impacto nos jornais e nas cotações. Querem um exemplo: numa segunda, o plano europeu para a Grécia deverá chegar para aguentar o euro; na terça pode já não ser suficiente. Que se passou no mundo entretanto que justifique a diferença? Nada. Talvez meramente a Sra. Roubini estivesse indisposta e indisponível, e vai daí as bolsas ressentem-se.

O João Duque (Prof.) é uma versão portuguesa mais mirrada e satisfeitinha. Anuncia catástrofes com um sorriso meio pouco másculo, julgando-se imune à porrada que vem aí e mostrando-se contente por aparecer num ecrã. Que eu saiba, nem acertou nenhuma previsão de relevo.

Como uma desgraça nunca vem só, são ambos feios como a noite dos trovões, o que acrescenta ao tétrico das suas intervenções. Para quando uma “guru” da Economia que se pareça com a rapariga do anúncio da Calzedonia que invadiu agora os “outdoors” de Lisboa, tornando o minuto de espera no sinal vermelho uma experiência inebriante? Essa podia anunciar o fim da humanidade que todos ouviríamos com um sorriso.


Mas voltando a assuntos sérios, o aviso de Fischer tem muita razão de ser. As grandes transformações da História nascem de uma pluralidade de factores. Quase sempre um deles foi uma tensão social com origem em dificuldades económicas que depois entroncaram em componentes nacionalistas, religiosas, ideológicas, de luta de classes, etc., catalizando o rasgo histórico.

Na origem da Revolução Francesa podemos encontrar uma posição das finanças públicas ao lado da qual a actual situação grega até não fazia má figura. Em 1781, quando Necker, director-geral das finanças, cometeu o deslize de divulgar publicamente o orçamento da coroa, as receitas limitavam-se a 503 milhões de libras para 620 de despesas, sendo exactamente metade destas para serviço da dívida. Por outro lado, mais de cinco por cento da despesa destinava-se a festas e pensões a membros da corte, facto que não caiu muito bem entre a população. Ainda assim, as escassas receitas resultavam de uma carga fiscal iníqua e sucessivamente agravada ao longo do século XVIII, já que o desequilíbrio das contas do Estado tinha um carácter crónico. Durante a década de 1780, a coroa encontrou uma oposição crescente à introdução de reformas fiscais que aumentassem os impostos, mesmo entre as classes mais abastadas. Note-se que a Luís XVI também não lhe passou pela cabeça reduzir a despesa. Em 1788, a agitação em Grenoble chegou a um ponto tal que as tropas foram enviadas para restabelecer a ordem. Os habitantes receberam-nas com projecções de telhas do alto das casas, levando os soldados com elas no alto da telha. Na sequência desta “jornada das telhas”, a nobreza, o clero e o povo da região do Dauphiné reuniram e declaram greve aos impostos. Teso e incapaz de pôr cobro à desordem que crescia no reino, o rei não teve outro remédio senão convocar os Estados Gerais para o dia 1 de Maio de 1789. O resto já se sabe: começa na Bastilha e acaba em Waterloo.

Na Revolução Inglesa os factores sociais e religiosos terão possivelmente preponderância, mas a componente económica também lá está. O rei Carlos I passou a década de 1630 à rasca de finanças, tentando dar a volta permanentemente com legislação fiscal extra-parlamentar que causava repúdio e foi acrescendo às tensões sociais que a questão religiosa motivava em Inglaterra. A partir de 1639, após tentar forçar a sua política religiosa sobre a Igreja Escocesa, os homens de “kilt” rebelaram-se e invadiram a Inglaterra. Carlos I foi pedir dinheiro ao Parlamento para reprimir a revolta, só que os parlamentares aproveitaram para apresentar uma lista de reclamações sobre a conduta real. O soberano não gostou, dissolveu o Parlamento e foi à guerra sozinho, mas a coisa correu-lhe mal: a dado momento tinha todo o norte de Inglaterra ocupado pelos escoceses, que lhe começaram a cobrar 850 libras por dia para não vir mais para sul (ao fim e ao cabo, eram escoceses), montante que se veio adicionar ao custo dos exércitos ingleses. Completamente à míngua, Carlos I acabou por convocar um novo parlamento em Novembro de 1640. Este revelou-se ainda mais hostil para com o rei, impedindo-o nomeadamente de promulgar novos impostos sem a sua autorização. Para ganhar umas massas, o monarca atribui contratos de drenagem de terras alagadiças nos “Fens”, no leste de Inglaterra. O impacto negativo destes trabalhos sobre a vida da população local causou muita indignação, atraindo grande parte do leste de Inglaterra para a facção parlamentar na disputa cada vez mais aberta que a opunha ao rei. Uma das pessoas que foi levada a tomar partido por causa desta situação de injustiça foi Oliver Cromwell. No rescaldo das guerras civis que sucederam, Carlos I foi decapitado em 1649, em frente à Casa de Banquetes de Whitehall e Cromwell governou o Reino Unido até à sua morte em 1658.

A nossa revolução de 1383 teria sido igual se a crise dinástica não tivesse ocorrido num cenário de crise económica, resultante do descontrolo financeiro de D. Fernando na sua guerra com Castela? Teria havido o mesmo papel activamente interveniente da burguesia urbana no apoio a um bastardo, o futuro D. João I? Fernão Lopes, nas suas crónicas sobre D. Fernando, fala dos “males que recebeu o Reino”, males que “os povos depois muito sentiram”. Esses males foram o desbaratar das reservas de moeda, primeiro, e depois “o gasto de grande multidão de prata com a mudança das moedas para satisfazer as grandes despesas de soldos e pagar cousas necessárias à guerra. Por causa disto as cousas subiram depois a tamanhos e tão loucos preços que el-rei foi obrigado a pôr a todas almotaçaria e a mudar o valor que ao princípio pusera a tais moedas”. Nos nossos dias, diríamos que D. Fernando pôs-se a criar moeda, originou uma espiral inflacionária e a seguir viu-se obrigado a intervir com controlos administrativos de preços (a tal almotaçaria). Conseguimos imaginar o impacto quer de uma coisa quer doutra sobre a vida das pessoas na época.

Num último exemplo, poderíamos lembrar o efeito decisivo que a crise de 1929 teve no destroçar da República de Weimar, abrindo as portas à ascensão do nazismo. O pessoal devia estar mesmo por tudo.


O que Joschka Fisher nos rememora, no seu artigo, é que a História não terminou, por muito que a miopia dos nossos dirigentes o proclame. Os casos acima descritos de forma simplista demonstram que crises económicas profundas podem propiciar as condições sociais para que os acontecimentos evoluam de uma maneira e não de outra, às vezes num sentido dramático. Fischer acha que simplesmente não se pode pôr um continente inteiro a apertar loucamente o cinto sem consequências sérias. Corre o risco de acertar.

Se os governos não perceberem a tempo o perigo que supõe o avolumar de tensões sociais trazidos pelo desemprego, pela diminuição das prestações sociais, pela incerteza do amanhã, pelo sentimento que a situação aproveita a uns poucos em prejuízo de muitos, vão se calhar ter um lindo enterro. Isto já para não falar do banzé que seria um descalabro financeiro sério, como por exemplo o que resultaria do desmembramento do Euro. Porque essas tensões, se não se fizer nada para que esmoreçam, hão-de ir parar a qualquer lado, se calhar a barricadas. E então passaremos momentos mesmo difíceis, embora porventura clarificadores.

A única consolação que então talvez venhamos a ter será a de ver nessas barricadas a cabeça do Roubini e de mais alguns “gurus” de pacotilha, espetadas num pau e a rapariga da Calzedonia, de seio descoberto e barrete frígio, a liderar o povo em fúria. As revoluções, mau grado o lado caótico, também têm a sua justiça e a sua beleza.

1 comentário:

NunoF disse...

Duas coisas...

1) A crise económica da França que aludes resultou (ou pelo menos foi agravada substancialmente) pela bolha especulativa do Banque Royale do escocês John Law em 1720. É impossível não traçar paralelos com as crises do sub-prime norte-americano.

2) É interessante verificar que houve democracias ocidentais que não degeneraram em ditaduras na crise do pós-1929. Não é inevitável a Revolução.