sábado, junho 05, 2010

O tempo maleável

“Time is a funny thing. Time is a very peculiar item. You see when you're young, you're a kid, you got time, you got nothing but time. Throw away a couple of years, a couple of years there... it doesn't matter. You know. The older you get you say, "Jesus, how much I got? I got thirty-five summers left." Think about it. Thirty-five summers.”


Fala em “off” de Benny, dita por Tom Waits, in “Rumble Fish” de Francis Ford Coppola



Recordo o tempo em que, ainda os meus dezoito anos vinham a alguma distância, o tempo me parecia um caminho sem fim. Vogando entre uma consciência indiferente e uma inconsciência adormecida, um saber social dizia-me que um dia trabalharia, que talvez viesse a ter filhos e que fatalmente morreria, se possível de velho. Mas tudo isso morava muito para lá da linha do horizonte. O tempo era enorme.


Há duas quintas correram dezoito anos sobre o momento em que por uma porta traseira da maternidade Alfredo da Costa, quase clandestinamente, me vieram mostrar um embrulho que continha um olhar negro, inscrito num crânio ainda ameloado pelo efeito dos fórceps, e cuja co-autoria me pertencia.


Curiosamente, recordo não ter percepcionado novidade naquele momento. Certamente um dos mais marcantes da minha vida, mas senti-o como se fosse o culminar, a extremidade de um segmento de tempo, não um elo isolado que valesse por si próprio mas o último de um processo quase ordenado, de uma cadeia sequencial, feita de expectativas, de sonhos, de preparos, de ânsias, mas que no meu âmago nunca imaginei terminar noutro instante que não naquele.


Senti, por outro lado, uma identidade forte. Como se aquele ser, símbolo e centro daquele momento, me estivesse meramente reencontrando, como um camarada de colégio que desaparece de circulação e com que chocamos acidentalmente ao virar de uma esquina. Como se aquele instante, de uma forma esconsa e que não apreendi ainda muito bem, fosse uma repetição, um retorno, a intercepção de um ciclo infinito com o plano sempre mutante do presente sobre qual vou erraticamente passeando.


Ora estes dezoito anos passaram que nem um fósforo, que nem minutos, voláteis e dramaticamente curtos como os segundos preciosos que sobram para o apito do árbitro quando uma equipa procura o golo que lhe falta. Cá dentro das nossas mentes (pelo menos da minha), há uma frase feita que algo nos sopra ao ouvido do espírito: “parece que foi ontem”. E a nossa razão embarca nessa história mal contada e diz que sim com a cabeça, como se entre o olhar negro inquieto da porta da maternidade e o olhar negro confiante que me olha hoje de cima para baixo apenas houvesse um rasgo no tecido crónico, como se não se tivessem escoado 216 meses, 936 semanas, 6574 dias, 157776 horas e tantos milhões de minutos e segundos que a calculadora até capitulou, acusando erro por “overdose” de dígitos. Muito tempo de facto, mas que cabe todo num hiato de memória entre dois olhares. O tempo é compressível até ao diminuto, quase até ao infinitamente pequeno.


Para o aniversário, quis oferecer um cartão com uma fotografia específica desse tempo longínquo, uma memória forte simultaneamente em papel e nos estranhos circuitos neuronais que ronronam no interior do meu crânio. Se me recordava bem dela, não me lembrava no entanto onde a pusera e por isso percorri anos de fotos e álbuns, milhares de imagens, desde as marcas dos ferros na cara da primeira hora ao jovem apinocado em fato escuro de há poucos meses. Revelou-se um exercício curioso e inesperado.


Dedilhei por sorrisos já mal lembrados e de dentes ainda anárquicos, pelos gritos atmosféricos das festas de anos, os embrulhos arrancados dos primeiros natais, a ansiedade da marca de partida nos saraus de natação, as pinturas e caraças de Carnaval, as fotografias da praxe com sorrisos de careta diante da torre Eiffel ou do palácio de Buckingham. Vi como eles eram pequenos e frágeis e como nós ficámos mais velhos e frágeis. Lembrei as modas mutantes, nos penteados, nos óculos, nas gravatas, nas sapatilhas, esticando, minguando, frisando, cromatizando. Encontrei também aqui acolá alguns que já cá não estão (fisicamente), outros que não sei por onde andam e que foram tão próximos que pasmei como pôde a vida separar-nos.


Sim, o tempo passou e longo e rico e cheio. E ali estavam apenas os marcos miliares de uma estrada de dezoito anos, subindo e descendo as encostas das nossas vidas. Os marcos são importantes: marcam. Mas entre eles houve que percorrer o lajeado do dia-a-dia, feito de corridas matinais para a porta da escola, dos pequenos sucessos e insucessos, das pequenas alegrias e tristezas, da sucessão dos amigos inseparáveis, da maturação lenta das personalidades, do entrechocar desajeitado dos talheres nos pratos do jantar, do respirar nocturno que como um alívio escutávamos pelas portas entreabertas. Uma existência pletórica, densa, quase espessa, mesmo que todavia mais discreta.


Vendo isto, concluo que afinal o tempo é como os matemáticos o concebem: um troço de recta que por pequeno que seja contem infinitos pontos, tantos quantos os que existem num troço maior ou fora dele. A vida de cada um, à sua maneira, tem a riqueza de todas as que vieram antes e depois.


E com esta cegada toda, assim caíram as folhas de calendário entre os meus vinte e oito de boa memória e os quarenta e seis que agora protestam no meu bilhete de identidade. Se aguentar mais trinta e cinco verões, como dizia o outro, já vai ser uma fezada. E também se forem menos não há azar. Sou um tipo com sorte: de certo modo, já tive todo o tempo do mundo.

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