sábado, agosto 01, 2009

Homens honoráveis

For Brutus is an honourable man;
So are they all; all honourable men

William Shakespeare, in “Julius Caesar”, III, 2

Aconteceu recentemente algo que, na minha óptica de pagante do pato, é de uma gravidade inusitada, tão inusitada como o fraco burburinho que causou neste país que tanto rosna quando em matilha. Para pouco morder, verdade seja…

O Estado português estendeu até 2042 a concessão do terminal de contentores de Alcântara, em Lisboa, a um grupo privado, sem concurso público e em condições que, naquilo que é do conhecimento público, não parecem nada defensivas para o nosso erário: reforço da taxa de rentabilidade da concessionária, partilha de risco desequilibrada com menor protecção do concedente, perda de valor em relação ao contrato anterior. O Tribunal de Contas tomou sobre o assunto uma posição particularmente forte para os brandos costumes cá da terra, dizendo que não consubstanciava nem um bom negócio, nem um bom exemplo. Será cedo para decidir sobre a primeira conclusão, mas se calhar concordaria já com a segunda.

Ainda por cima, quando as coisas são mal feitas, como aparentam, o azar acaba por casar com a incompetência. Por azar, o presidente do conselho de administração da empresa beneficiada é um antigo ministro das obras públicas do partido que governa. Para mais azar, o presidente do Tribunal de Contas é um antigo ministro das finanças do partido que governa. Não podia ser mais picante, nem mais azar…

Já aqui escrevi sobre a presunção de inocência como um valor fundamental numa sociedade decente e que infelizmente em Portugal muito se espezinha. Não vou por isso dizer que o ministro ou o ex-ministro são isto ou são aquilo. Mas, quando um órgão com a importância do Tribunal de Contas afirma com todos os efes-e-erres aquilo que afirma, então existem indícios de algo que na hipótese simpática é incompetência e na pior não o é. Qualquer uma delas potencialmente muito grave e a requerer investigação e esclarecimento. O incómodo, para não dizer a suspeita, são aqui legítimos e expressá-los publicamente não contradiz o respeito que nos merece a possível inocência dos visados nesta história. Estes últimos deveriam aliás ser, nesta óptica, os mais interessados em que a Justiça investigue e conclua, porque neste momento já estão a ser julgados na praça pública.

O ministro optou exactamente pelo caminho contrário e atacou o Tribunal de Contas. Fez muito mal: não entendeu que num sistema de “checks and balances” os outros poderes não são adversários, nem se combatam com a converseta própria da política partidária. Se eu estivesse no lugar dele queria mas é que as investigações começassem rápido para poder provar a minha inocência.

Ao primeiro-ministro ainda não ouvi uma palavra sobre o assunto. Se não a disse, fez muito mal: o governo é dele e – já que o ministro não o faz – deveria ele ser o primeiro a manifestar preocupação pelas conclusões do Tribunal de Contas e a solicitar célere o mais rápido e aprofundado inquérito ao tema. Ao estar caladinho, está-se a atar de livre vontade ao poste onde o ministro já começa a chamuscar, lambido pelas chamas da má-língua.

Os jornalistas, esses, fizeram pior ainda, para não variar: o tema passou algo despercebido, ou então ligeiro, como se de um mau passo se tratasse, quase como uma tecnicalidade, quando no fundo pode ser uma questão de regime. Sem querer exagerar. Quando comparamos com o banzé que a mesma ministerial figura suscitou com o deserto ao sul do Tejo e com o “jamais”, percebemos o que interessa à nosso magra imprensa, especialmente a televisiva: circo máximo e risco mínimo.

A frase que aparece em epígrafe a este texto veio-me à memória quando li pela primeira vez sobre este caso. Pertence à peça Júlio César, de Shakespeare, e a um notável discurso fúnebre que Marco António diz junto ao cadáver de César logo após a sua morte. Bruto autorizara-o a fazer o elogio do defunto mas proibira-o de criticar os que haviam perpetrado o assassínio. Marco António, que é um sacaninha, obedece mas acaba por conseguir manobrar a plebe e arrebanhá-la para limpar o sebo a Bruto e seus aliados. Fá-lo referindo-se sistematicamente a Bruto e aos seus parceiros como “homens honoráveis”, com crescente ironia. E foi essa levíssima mas feroz ironia (“so are they all, all honourable men”) que me assaltou o pensamento, se calhar irracionalmente, se calhar injustamente. Certamente, com uma carga negativa.


Na peça, Bruto divide-se entre a amizade e admiração que tem por César em quem, no entanto, reconhece uma ambição perigosa e o seu amor pela república romana, que essa ambição põe em causa. Acaba por embarcar no conluio para matar César, por considerar que só assim protege Roma, mas fá-lo assumindo e mesmo antecipando as implicações do seu acto. Se Bruto é ou não um homem honorável, tal questão deixa-a Shakespeare ao critério do espectador.

Por mim, no final, não tive dúvidas: Bruto foi um homem honrado, que agiu como a sua consciência lhe ditava e assumiu as consequências sob a forma de um destino trágico. Voltando às concessões que precipitadamente se renovam sem concurso, gostava de ver o fim da peça e que esta não ficasse a meio, como por cá costuma. E não peço, nem ao nosso primeiro nem aos segundos que comanda, que morram como Bruto, no fio da espada. Peço que percebam que existe um ponto para além do qual a ética democrática não lhes permite que assobiem para o lado, mas lhes recomenda que ajam. Que se preocupem, que investiguem e, se caso for, que assuma as consequências quem tiver que o fazer.

2 comentários:

NunoF disse...

HONRADOS, meu caro Carlos, e não Honoráveis...

CMata disse...

Por acaso não, caro NunoF, é mesmo "honoráveis" que eu quero dizer, no sentido de aquele a quem a honra é devida. E pode ser devida por mérito ou estatuto.

No discurso de Marco António que refiro, parece-me óbvio que ele usa a palavra "honourable" com ironia e querendo intuir justamente que honrados é que eles (Bruto e restantes) não são. E assim sendo, o único sentido da palavra que faz aqui sentido é o "honorável", na sua versão "por estatuto".

Abraço