segunda-feira, agosto 24, 2009

Os "singles" do Solnado

Como que aproveitando o sossego que no mês de Agosto assenta praça na sua cidade de Lisboa, morreu Raul Solnado. Morreu de leve, como Eça disse de Júlio Dinis mas, ao contrário deste, não viveu de leve.

À parte a ironia suave do velho Mata que na altura ainda passava por mim como uma oura que refresca mas não se nota, creio que ouvir Solnado foi, no final dos anos sessenta, o meu primeiro contacto com o Humor com agá à cabeça. Eu tinha dele uns “singles”, que para esclarecimento dos leitores mais jovens informo serem uns discos de plástico preto estriado com um buraco no meio que, rodados a quarenta e cinco rotações por minuto contra uma agulha de safira, emitiam através de um altifalante uma mistura de crepitações e de voz do Solnado a contar umas histórias.

Nesse tempo, Portugal ria pouco e ria mal: recordo que para os mais anciães qualquer historieta que tivesse puns passava por ser uma boa laracha, que nos era contada com um piscar de olhos como se de uma prova de iniciação se tratasse. A época de ouro da comédia portuguesa filmada já passara e já só passava, com estranhas parangonas de novidade, nas noites de cinema do único canal da têvê. Nesta, para sorrir mais, apenas com séries americanas como o “Get Smart”, o “Green Acres” ou o macho que falava.

Não havia humor político à superfície. Normalmente, a autoridade vê com medo a liberdade que o acto de rir implica, como bem se retrata no “O nome da rosa”. Por isso a anedota política circulava baixinho, da boca de um druida para a orelha de outro e não chegava aos pátios de escola que eu frequentava.

No meio deste aparente deserto, flamejava o Solnado e o seu “stand-up comedy” de pronúncia alfacinha e hesitante, com um humor absurdo dirigido ao coração do absurdo do Portugal do fim dos anos sessenta: a guerra (de 1908), o orgulhosamente sós (na chamada para Washington), o ténue movimento “hippie” (pelo Ludgero Clodoaldo), a explosão turística (o Fritz), e sobretudo a história da vida dele, que era em muitos sentidos a nossa, colectiva.

Nos obituários que agora lhe dedicaram verifico haver unanimidade sobre o carácter vertical e carinhoso do seu humor, sem agressões e sem palavrões. Concordo inteiramente. Os grandes humoristas são como um exército, combatendo contra a tacanhez e a pusilanimidade que como grilhetas genéticas vão atormentando a humanidade que se julga sempre mais esperta do que é. A maioria dos humoristas combate em campo aberto, atacando de frente. Alguns, como a tropa fandanga dos seis Monthy Pithon ou dos quatro Gato Fedorento, entram que nem um comando especial pelos nossos preconceitos adentro, à bruta, não deixando pedra sobre pedra. Outros, “snipers” de pontaria exímia, vigiam longilíneos, esperando o melhor ângulo para ferir de morte o nosso ridículo: assim Seinfeld ou Jon Stewart (ou Herman nos seus já muito remotos tempos de veia inspirada).

Raul Solnado, esse, era um infiltrado. Trabalhava no meio da tropa adversária, aparecia de surpresa mesmo ao nosso lado, sem que ninguém tivesse dado por ele, solto para causar a maior mossa, assim à boa-fila. Parecia um dos nossos mas era do inimigo, de um inimigo comparsa como o da sua guerra das terças, quintas e sábados. Como companheiros de armas, para aí Tati ou Chaplin.

Solnado dizia sentir pena de um cómico que precisasse de dizer palavrões para fazer rir. Talvez aqui não concorde com ele: Gil Vicente, Bocage, Lobo de Carvalho, o abade de Jazente e tantos outros largaram fortes bujardas, com piada e muito a-propósito. Da minha geração, Manuel João Vieira consegue ter uma graça subtil à base das maiores cavalidades. Em qualquer caso, seja com palavreado ou sem ele, é preciso um espírito que ele tinha e a maior parte dos nossos contemporâneos nem cheira.

Com o tempo, foi aparecendo menos. Talvez se sentisse pouco inspirado, talvez andasse simplesmente ocupado a ser solidário, a deixar uma obra tão relevante para os seus companheiros de ofício como a Casa do Artista, realização em que muito se empenhou. E muito discretamente, o que é notável num país onde os presumidos notáveis passam o dia a empinar-se para aquelas revistas hediondas que vendem bronzeados de lata.

Quando morreu, o país sentiu aquele amargo de boca de pouco se ter lembrado dele nos últimos tempos. Terá estado acompanhado pela família (e esses é que importam), mas todos nós que ríamos sentados de calções e joelhos esfolados ao lado do gira-discos nem demos pela coisa. Por isto, relembrando aquela parte da “História da minha vida” em que a mãe, que tinha ido pedir um ramo de salsa à vizinha, lhe ralhava por ele ter nascido sem ela lá estar, apetece-me dizer-lhe: “Olha! É a última vez que morres sozinho, ouviste?”

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