sábado, julho 18, 2009

Que é que andamos aqui a fazer?

O actor diz uma palavra inaudível.

Reduz a humidade e o calor da terra

à confusão dessa palavra.

Herberto Hélder, in “Poema do actor”


Pois, amiga: mais do que pensamos.


Ao princípio parece um brinquedo. Divertimo-nos. Mudamos cabeçalhos, ou as cores – enfim, há quem mude – alinhavamos e corrigimos. Ficamos contentes. Depois, umas semanas, dois meses e torna-se um sacerdócio. Insistimos. Vencemos a inércia. Dizemos: há muito tempo que e portanto obrigamo-nos. A dado momento, tornou-se um hábito que nos toma o sábado à noite ou que nos acomete inesperado mas periódico. Até que um dia se torna parte da nossa textura, como mais uma derme.


Durante este processo de ensimesmamento, não escrevemos – é verdade – sobre nós, mesmo quando sobre nós escrevemos. Há, em cada vida, em cada pessoa, matéria para redigir todos os livros do universo. Todos nós procurámos, como Ulisses. Todos amámos, inamovíveis como Romeu ou patéticos como Quixote ou impossivelmente como Carlos da Maia ou tudo isso e mais ainda em simultâneo. Outras vezes, a espaços, fomos estrangeiros na nossa terra e na nossa vida. Tivemos noites em que nos colocámos a pergunta de Hamlet, por outras palavras, sem fantasma e sem caveira. E como o velho, fizemo-nos a mares privativos e lutámos braviamente contra os nossos espadartes de estimação e até conseguimos. Baixámos em visita aos infernos que borbulham cá no fundo, os nossos demónios rindo-se de nós. E assim sucessivamente.


Quando julgamos escrever sobre nós, fazemo-lo afinal de dentro para fora, de nós para o mundo. Pensamos estar numa torre de marfim, isolados de tudo, materializando o nosso íntimo em cargas eléctricas num painel de cristais líquidos e guardando-o ciosamente em longínquas memórias de computador. Pretensão vã: o que estamos é a reflectir a vida lá fora, em todas as direcções, como as facetas de um diamante que não brilha se não receber luz. Dizia Ortega y Gasset que o homem é ele e as suas circunstâncias. Verdade. Mas, como consolo, as circunstâncias também são elas e nós. Porque nós somos o mundo, mais até do que dele fazer parte.


Assim se passa com todos, mesmo os maiores, de quem somos sombras. Sabias que as personagens do Guerra e Paz, excepto as que existiram historicamente, são na maioria representações de familiares do conde Leão Tolstoi? Também ele, um monstro da literatura, pegou no seu mundo pessoal e próximo e transformou-o naquele painel gigante sobre a vida e a História, que a todos diz respeito, geração após geração.


E não duvides que vale a pena. Quando escrevemos e partilhamos, quando nos expomos, quando motivamos um sorriso ou induzimos um pensamento, mesmo que de desdém, damos sentido à vida. Deixamos de ser moléculas presas à pouca latitude das regras quânticas e tornamo-nos espírito, amplo e quase perene. Libertamo-nos das leis da física num orgasmo de individualidade. Está bem, orgasmo será exagerado, mas reconhece que dá um certo gozo.


Quando digitamos nos nossos teclados, quando fazemos o “save now”, usamos da generosidade dos actores. Os nossos blogues são um palco onde representamos as nossas cenas. O estrado é pequeno, apenas alguns “bytes” num servidor, ronronando a um canto numa dependência climatizada, algures. A sala está escura: sabemos que há público, embora não o consigamos distinguir. Interpretamos vários papéis: nós próprios, nos momentos de maior franqueza, embora mais geralmente a imagem que temos de nós, ou por vezes um personagem que construímos para afirmar o que pessoalmente não temos coragem. E isto é bom: como diz o poema, ninguém ama tão desalmadamente como o actor.


Escrevendo para ti, sobre ti, amiga, alumias muito mais à tua volta do que se calhar suspeitas. Orgulha-te durante uns breves segundos.


2 comentários:

Cristina Rodo disse...

Bolas, Carlos... deixáste-me de lagriminha ao canto do olho!
Ganda post!

Alex disse...

Verdade, Ganda post!

Há algum tempo que não passava por aqui,com calma, e, sem lisonja, é sempre um prazer: sinto-me como num duche que me lava a alma da estupidez quotidiana (esta não é minha, ouvi em qualquer lado com outras palavras mas é isto mesmo que sinto)

Até breve