sábado, julho 11, 2009

Crítica literária – o alegre magazine

Those disco synthesizers,
those daily tranquilizers,
those body building prizes,
those bedroom alibis,
all this, but no surprises for this year's girl.


Elvis Costello, in “This year’s girl”


Afligido com um problema de carácter pneumático e abdominal, inscrevi-me num ginásio com o objectivo de reduzir por via mecânica as larguras generosas que não soube atalhar pela disciplina alimentar. No acto de associação ganhei, apesar dos meus protestos, uma assinatura da revista Happy Woman, conhecida entre as leitoras mais fiéis simplesmente por Happy. Esta publicação, mais a tender para o compêndio que para o folheto, passou a atravancar mensalmente a minha parca caixa de correio, concorrendo em volume com os catálogos da “La Redoute” e em inutilidade com a magnífica folha a quatro cores com que a Junta de Freguesia publicita, a expensas do contribuinte, os valorosos feitos do seu presidente (descerramentos de placas alusivas à sua presença e outros que tal).


Normalmente, a Happy segue directamente para o papelão sem passar pela casa Partida, tão virginal como chegou. Ainda considerei colocá-la na casa de banho, mas o papel acetinado tem um dobre anguloso que não o recomenda para tarefas de pós-processamento.


Hoje, acometido de súbita curiosidade antropológica, decidi debruçar-me sobre o número de Julho de 2009, num exercício de perda de tempo semelhante ao folhear das Nova Gente que se empilham nas mesinhas das salas de espera da nossa classe médica, provavelmente com propósitos anestésicos. Perda de tempo que passo a partilhar com o leitor, que se está aqui é porque também não deve ter mesmo mais nada para fazer.


Começando na capa, assalta-nos uma fulana com canivetes de maratonista etíope, tez pálida, rímel carregado e cavalgando uns saltos altos de quinze centímetros, exibindo os riscos de uma dieta vegetariana, numa pose mais pretensa do que pretensiosamente “sexy”. À sua volta, os títulos dos sumarentos artigos desta edição: adoro sexo (testemunhos de mulheres sem preconceitos); a dois (a terapia de casal salvou o meu casamento); acupunctura (como perdi seis centímetros em três sessões); novo sex toy (testámos o brinquedo que faz sexo oral); tendência (elas gostam deles mais novos); e outras do mesmo maciço calibre, certamente de pedagógico interesse para qualquer moça casadoira.


No interior, habitam 210 generosas páginas. Só que – dei-me ao trabalho de contar – 68 são de publicidade, da oficial, com “Pub.” no canto da página e quase outras tantas são da outra, da encapotada. Aliás, a Happy foi construída de maneira a que não se distinga a publicidade do resto, resultando numa orgia de anúncios só suplantada pelos intervalos nas noites de cinema da SIC e da TVI.


Passando ao conteúdo, se é que se pode usar o termo, abramos ao acaso.


Página 65: rúbrica “Privado”. Vulgo horóscopo, mas dedicado à atitude laboral. À guisa de introdução, a Happy informa que um tal de Michel Gauquelin, especialista em estatística e psicólogo, descobriu que o sucesso na carreira está relacionado com a motivação. Pois. Grande guru. Com mais algum esforço de pesquisa teria descoberto que as escadas nos edifícios de escritórios sobem para cima e descem para baixo. Vou à “net”, descubro que este Michel era mas é astrólogo e percebo. Freud fica melhor do que a Maya na bagagem da menina moderna. Adiante.


Página 134. Colar a 1490 € na Pianegonda. Não sei onde fica este estabelecimento como nome de rainha visigótica, mas com preços tão bárbaros devia ser proibido fazer-lhe publicidade, por perigo para a economia familiar. Rapidamente adiante ou atrás, tanto faz.


Na 94 e seguintes, entrevista com o maquilhador da casa Dior, José Teixeira. Ora eis um mester que nem eu, nem o corrector do “Word”, sabíamos que existia. Este Zé afiança à cabeça que “a pele dourada, com um efeito nude mostra-nos que um look natural é o que é trendy este verão”. Agree totalmente, ó Joseph. E also estamos de acordo that “para os olhos imperam as cores ácidas, como o rosa fluorescente e o azul-turquesa”. Não sei como é que medes o pH das cores, mas se gostas de acidez a sério, experimenta o azul-sulfuroso que vais ver o que é que é imperioso. Vamos andando que isto pode-se pegar.


Página 148, na rúbrica “a dois”, a manchete titula “Material girl – três mulheres experimentaram Sasi, o masturbador feminino”. Finalmente, alguma ciência. O Sasi dispõe de duas velocidades e várias coreografias de movimentos. Sim, coreografias. Estava lá escrito. Suspeito que varie entre o movimento pendular do cantochão alentejano e o ritmo sobrenatural da macumba brasileira, passando pela polca e pelo “street rap”. Três voluntárias prestaram-se a um ensaio de condução. A Cláudia de 42 anos adorou, apesar de “ter perdido meia-hora a ler as instruções e a adaptar a ficha às tomadas” e ainda “de ter que esperar uma hora e quarenta e cinco minutos para que as baterias carregassem na totalidade”. Chatice, isso de fazerem manuais com três parágrafos completos. Mas compreendo que, após duas horas e quinze de escaldante espera, o Sasi não precisou de muito para brilhar. Ao invés, a Carla, de 32 anos, ficou algo decepcionada e estranhou, porque normalmente “vai facilmente ao rubro” – eu também, mas só em Alvalade, quando o Liedson dá uma de Sasi na baliza do Benfica. Carla, tens que compreender que no dia anterior, após duas horas e um quarto de lânguida espera, a Cláudia deve ter deixado o Sasi feito num oito. E mesmo os electrodomésticos precisam de se recompor. Finalmente, a Isabel, de 29 anos, achou o Sasi “fofinho, mas quase inerte”. Sasi, não te rales, elas às vezes são assim. Levo-te a beber uma cerveja para descomprimires e poderes desabafar.


Na folha 74, artigo de tese disserta sobre mulheres que seduzem homens mais novos. Mais uma tendência Primavera-Verão, que me vai obrigar a falsificar o bilhete de identidade para não me calhar nenhuma avozinha. Detalhe irónico: as pequenas que ilustram o artigo (aliás todos os artigos) têm no máximo vinte anos e aquele ar de girafa sem manchas. Detalhe jocoso: um dos subtítulos afiança “o sexo é muito bom”. Folgamos em saber. Nunca tínhamos reparado.


Página 130. Carteira da Prada a 1250 € na Fashion Clinic. Ala que se faz tarde!


Página 106. Chocolate “zen”, os melhores tratamentos com cacau. Na Ana Teresa Estética, no Porto, “tratamento cem por cento vegetal, à base de grão de cacau micronizado, talco e cereais, iniciando-se com esfoliação suave seguida de envolvimento com máscara de cacau e etc.”. Módicos 90 euros. Em Braga, na Angels Clinic, só 65 euros, mas calculo que o chocolate seja daquele em barra para mousse. Andando.


Página 152. Surpresa, surpresa, outro artigo sobre sexo! “The love doctor – como a terapia de casal salvou o meu casamento”. Não tive pachorra para ler.


Folha 140. Momento de introspecção: “descubra a sua personalidade erótica”. Parece-me apropriado, até porque ainda não tínhamos falado sobre sexo nesta edição.


Logo de enfiada, salvo seja, na página 144, testemunho. “Adoro sexo” como discreto título. Passamos a saber, em caixa, que Patrícia, advogada, 41 anos, pagou 500 dele para ter sexo com um profissional. Ora aqui está um senhor que merece todo o meu respeito e consideração, já que no meu emprego pagamos para os advogados nos “sexarem” e nunca o contrário. Parabéns, ó meu, e aumenta-me essa tabela de honorários que o mercado não foge!


A Happy, um terço anúncios e outro terço sexualidades mais ou menos exóticas, vende, ao que consta, mais que qualquer outra revista feminina em Portugal. Dirige-se segundo a sua editora a uma “mulher moderna, cosmopolita, aspiracional, que sabe o que quer e que, certamente, quer mais da vida”. Vou ser apodado de careta, senão pior, mas se o segmento a que a Happy aponta é o das modernas e cosmopolitas, então venham as antiquadas e rurais. Porque a imagem que a Happy nos dá das mulheres (felizmente a milhas da verdade) é a de umas fúteis meramente à cata de compras e, sobretudo, de umas aguadas desesperadas pelo que é que é com o primeiro que aparecer, nem que seja o Sasi. Nas fotografias que servem de pano de fundo às peças, não há uma única mulher de verdade. Só modelos esquálidos, em poses improváveis, com o olhar vazio. Por isso, bem ponderadas as coisas, a Happy é literatura da mais machista que já me passou pelas mãos, conseguindo neste campo bater, de modo perverso, a velhinha Crónica Feminina do tempo das nossas avós, com as suas receitas, os seus lavores e as suas puritanas recomendações. Mais cómica, no entanto.

4 comentários:

PW$$$ disse...

:-)

Cristina Rodo disse...

Ai que já estou mesmo a temer retaliação na vida em azul cueca... lol

Mac disse...

F-A-N-T-Á-S-T-I-C-O !!!

Adorei! Está muito bem apanhado.

Grandes beijas
MAC

NunoF disse...

Muito bom Carlos... pena que estivesses em modo 1234 adjectivos por substantivo... cansa um bocado :-)