domingo, junho 07, 2009

Teoria da relatividade


Era porém justo que houvesse banquete e festa, porque este teu irmão estava morto, e reviveu, tinha-se perdido e foi encontrado. (São Lucas, 15,32)


Quem tem cu tem medo (Adágio popular)



Nestas semanas que passaram, apanhei o susto da vida. Um dos meus filhos doente, análises inconclusivas, alguma preocupação dos médicos num resultado sublinhado a caneta. Havia que esperar. Imprudência minha, coloquei a pergunta errada: pode ser o pior? Levei com a resposta redonda: não espero mas não posso descartar. E o chão fugiu-me debaixo dos pés.


À minha volta, teciam-se considerações estatísticas. Havia que serenar e pensar no frequente, não no raro. No provável e não na improbabilidade funesta. Seguros destes argumentos, todos ao meu redor viam o céu azul. Mas eu olhava e encontrava uma nuvem negra, pequenina, lá ao fundo. Repetiam-me: não te preocupes, fará sol amanhã. E eu: mas a nuvem parece-me preta e a crescer. Que não, que não pensasse em chuva. Porquê olhar para o único canto escuro do céu quando quase todo ele irradiava luz?


Tentei fugir-lhe e a nuvem pôs-se a caminho, sempre por cima da minha cabeça. Mirava por cima do ombro e achava-a mais gorda, espapaçada de chuva, prometendo borrasca. À noite, quando me deitava, olhava para o tecto e lá estava ela, anafando-se, avolumando-se, exagerando o negrume para melhor me estoirar na vida.


Passei mal. Dormi apenas as poucas horas que o cansaço, já próximo da aurora, aceitou conceder-me. Pintei, na tela frágil dos meus medos, os cenários mais sombrios, construídos de dor em carne viva. Perguntava-me: e se for? Que lhe digo quando ele me perguntar? E de cada vez que me decidia a seguir em frente, varrendo este mal da minha cabeça, a nuvem, lesta, contornava-me, barrando-me o caminho, subjugando-me com malícia.


Finalmente, estando em Paris, recebi a melhor das chamadas: confirma-se, está tudo bem. Olhei para cima. A nuvem – que viera comigo de avião, sendo mesmo a única do lado de dentro do aparelho – esfumara-se quase instantaneamente, só sobrando uns farrapos que, vogando, se afastavam, como penugem ao vento.


Quando regressei levei nas orelhas, de todos os quadrantes. “Vês? Era preciso tanto sofrimento? Espero que tenhas aprendido.” Pus a mão na consciência: de facto, aprendera qualquer coisa. Não saíra a mesma pessoa desta experiência, deste mês de convívio com a minha nuvem negra particular.


Tive prova disso dias depois, quando me surgiu um aborrecimento no trabalho. Uma viagem para uma reunião inesperada, que não me parecia de grande utilidade, marcada pela chefia em altura que não dava jeito. Danei-me. Mas, de repente, veio-me a memória da nuvem, balofa e inquietante. Pensei: que preocupação de chacha! Venha a viagem! Não merece que dedique um ião que seja nos meus neurónios a aborrecer-me com isto.


Concluo, de facto, que há infelicidades absolutas, indeléveis, como a perda de um filho, ao lado das quais as pequenas agruras da vida são orvalho que se afasta com a palma da mão. Mais: não sofrer uma infelicidade absoluta é em si uma felicidade absoluta, que deveria ser imbeliscável pelos aborrecimentos mindinhos. Ao lado dela, tudo o mais é relativo.


Eu só andei umas semanas com a chaga da pequenina nuvem a reboque, que se desvaneceu num instante à luz das boas notícias. Mas há pais e filhos que voam permanentemente no meio da tormenta, bem no coração de um “cumulus nimbus”, levando com granizo e trovoada, agitados para cima e para baixo, sem esperança de bom porto. Uns, determinados, de semblante estóico. Outros, de olhos destroçados. Todos, certamente, rasgados por dentro. Que consequências podemos retirar da sua dor?


Várias: éticas, morais, até políticas. Sobre o sentido da felicidade. Sobre o valor único da vida e do Homem. Sobre a fibra daqueles que o defendem. Sobre a barbárie dos que condescendem. E mais sobre as quais, em tempo, aqui conversaremos.


Lembremos, por exemplo, que crianças há que morrem de fatalidade, de acidente, de doença, o que já em si é uma tragédia sem retorno. Mas outras vão-se ao tiro e à bomba, às mãos do mal absoluto em que os homens são férteis. Nestes casos, não há espaço para relativizar.


Da próxima vez que ouvirem algum filho-da-puta de merda, político ou jornalista, referir-se a crianças desfeitas por mísseis de alguma “bem sucedida operação” com a expressão “danos colaterais”, atentem e percebam que os palavrões obscenos são estas últimas palavras e não os vocábulos bem objectivos que alinhavei no início desta frase. A talhe de foice: vocábulos aplicáveis a juízes que mandam crianças apanhar porrada na Rússia, desculpando-se depois do indesculpável e a ministros que tergiversam sobre o assunto, tentando disfarçar o indisfarçável da sua mesquinhez.

1 comentário:

Cristina Rodo disse...

Não perdes pela demora... lol

PS: E o devaneio final foi batota... o tema era suposto ter sido a tua caguinchisse e não o sofrimento infantil...