terça-feira, junho 30, 2009

Os novos cadafalsos

Leio no jornal, com pesar e vergonha do meu país, que todos os anos em Portugal dez mil cirurgias ao cancro se realizam fora dos prazos máximos previstos na lei e consignados na boa prudência médica.

Revela o mesmo artigo que a situação até tem melhorado, o que não deveria servir de consolo a ninguém. Não servirá, certamente, aos 233 que o ano passado contribuíram para o alívio das estatísticas das listas de espera ao decidir morrer inopinadamente.

Esta é daquelas que devia ser resolvida já, custe o que custar. Gaste-se o que se gastar. Cometam-se loucuras, como emitir dívida pública, ou acertem-se decisões, como proibir os gastos sumptuários com tendas gigantes para inaugurações e gabinetes ministeriais de ligação à comunicação social, mas arranje-se o guito. Se o problema for de falta de médicos, metam-se os doentes no avião e que se operem no estrangeiro.

Não temos o direito, enquanto sociedade, de brincar com este assunto. Desculpar-se, seja com estatísticas, seja com suspiros, é a mais cabra das atitudes. Cada uma daquelas pessoas que se vê numa lista de espera de cirurgia oncológica sofre diariamente, lentamente corroída por dentro, os mais estruturalmente humanos dos medos, aqueles que nos fizeram sobreviver a predadores e glaciações, até aqui chegarmos: o receio da dor e o receio da morte. Não podemos, colectivamente, evitar a maleita ou sossegar-lhes a ânsia. Mas podemos – e devemos – mover mundos e fundos para que não falhe qualquer hipótese de reduzir, por infinitesimalmente que seja, a má probabilidade.

Se quisermos habilitarmo-nos minimamente a fazer parte da espécie humana, não nos passe pela ideia tolerar que doentes que poderiam não ser terminais se tornem, vagueando de corredor em corredor e de guiché em guiché, de requisições na mão, pedinchando como um favor ou uma cunha aquilo que é um direito básico: o direito à vida.

Ao falhar um imperativo categórico tão simples, estamos na prática a proferir uma condenação à morte encapotada, em que o capote tem a forma da nossa crueldade e a cor da nossa preguiça.

Portugal foi o primeiro Estado-nação da Europa a abolir a pena de morte para crimes civis, em 1867, naquela que foi uma das nossas melhores horas, com perdão pelo anglicismo. Antes, em 30 de Novembro de 1786, o grão-duque Leopoldo II de Habsburgo promulgou o fim da pena capital na Toscânia e a destruição de todos os equipamentos destinados a execuções. Seguiram-se a efémera República Romana em 1849, a Venezuela em 1863 e São Marino em 1865. E depois nós, mais de um século antes de países com mania, como o Reino Unido ou a França.

Infelizmente, cento e quarenta e dois anos depois, parece que queremos substituir o garrote e a corda pela incúria e a ganância, e o sombrio dos patíbulos pela luz artificial dos corredores do IPO. Por isso, vale a pena lembrar aqui o nome do homem que tomou a iniciativa de acabar com a pena de morte entre nós: Augusto César Barjona de Freitas, ministro da Justiça pelo Partido Regenerador, jurista, deputado e par do Reino. Que a memória do seu exemplo humanista sirva, pelo menos, para envergonhar as cáfilas que vão assistindo com ar herbívoro ao aumentar e diminuir das filas de espera das operações de oncologia, como se fossem a coisa mais natural deste mundo.

Sem comentários: