domingo, junho 07, 2009

Sol ou sombra

O chifrudo anda à solta no tema tauromáquico em Portugal. Li que as câmaras de Viana, Braga, Cascais e Sintra decidiram em plenário “proibir” as touradas. Como as autarquias não riscam nada no licenciamento destes espectáculos, a proibição não passa de uma condenação moral, do tipo “aqui os civilizados não toleram costumes selvagens e não vos querem cá”. Cheirou-me a léguas a mania e a tese dita fracturante, ao estilo daquela esquerda que trocou a ganga operária pela camisa Façonnable ou pelo pólo da Paul and Shark. Consequentemente, eu – que nem sou aficionado – vi-me logo cheio de vontade de correr ao redondel mais próximo a comprar entradas para o sector sol e assistir a uma festa brava.

O debate entre adeptos da tourada e defensores da bicharada é relativamente minoritário em Portugal, mas quando surge ferve muito em água pouca. Habituámo-nos a ver nos frente-a-frente televisivos entre políticos um exercício delicodoce entre pares do mesmo ofício, cheio de “sô doutor” para aqui e para acolá e protestos da mais elevada consideração. Mas se puserem num estúdio lado-a-lado um comentador taurino e um membro de uma qualquer sociedade protectora da bicheza, podem ter a certeza que a coisa não é assim. Em menos de cinco minutos teremos um confronto a sério, com insulto e peixeirada garantidos. Rapidamente os argumentos racionais sairão de cena para dar lugares a ferozes acusações dirigidas pelo defensor dos animais ao fã tauromáquico, do género “bárbaros” e “que maus”, a que este retorquirá com insinuações, mais explícitas do que menos, sobre a falta de masculinidade do opositor. Quem tiver a felicidade de assistir a tal choque de titãs não se arrependerá do preço do bilhete.

Sei que para almas mais sensíveis ou algo analíticas, uma tourada compara com as matanças de bebés-foca à paulada: uma barbaridade indigna do excelente século onde vivemos, século de genomas desnudados e redes planetárias de computador (e em que se mata gente à paulada com visionamento no “Youtube”, mas isso são fenómenos sociologicamente explicáveis que não têm por que ferir as sensibilidades mais ecológicas). Por outro lado, a tal esquerda da moda associa touradas ao latifúndio marialva, de patilha e boné, sapato italiano e camisa aberta no peito, gabiru e reaccionário, pilar do antigo de regime e bem-sucedido no novo, como fielmente o descreveu José Cardoso Pires na “Cartilha” e noutros textos, e por isso acha mal.


Creio que são duas visões algo exageradas. Para começar, e restringindo-nos à corrida à portuguesa, os únicos bichos que correm risco de vida na arena são o toureiro ou o forcado. Não me recordo de nenhum touro que tivesse saído do redondel com mais do que feridas superficiais, mas sei de cavaleiros que foram retirados de maca em estado terminal e primeiros-cabos que passaram a falar fininho após uma pega menos sucedida. Não me recordo, por acaso, de ver os defensores dos animais preocupados com a saúde destes bichos-homem. Se calhar até acham piada, confessem lá!

Retorquirão que os touros vão para matadouro após a corrida. É também esse o destino do boi doméstico e não me parece que o grosso da população portuguesa esteja preparado para deixar de comer bifes. O touro sempre tem uma vida de liberdade e uma oportunidade única de arrumar de vez com um bandarilheiro, tudo muito mais digno que a existência de rações e engorda do seu primo boi. Sem touradas, extinguia-se o touro bravo, o que não abonaria a causa da biodiversidade. Na prática, touro e toureiro constituem um ecossistema e, por isso, a posição de certos ecologistas de repúdio da festa brava não prima pela consistência.

Quanto ao vínculo ao período do Estado Novo, será visão porventura redutora. Muito antes de Salazar andar de fraldas já a tourada unia em Portugal monarcas e governados num mesmo entusiasmo. Segundo se relata, já no século XVIII, D. José assistiu “in loco” à morte do Conde de Arcos após uma faena mal-sucedida, mais um que saiu da praça carregado por quatro. Almeida Garrett contava de Alhandra, a toireira. Fialho de Almeida, em “Os gatos”, descreve-nos o ambiente de uma “ferra” na Azóia: “há uma algazarra alegre em toda a quadra, gargalhadas, apupos, falatório, uma confusão de chapéus e lenços, cintas, saiotes por cima dos poiais, que bole de mistura continuamente os seus mosaicos de cores bárbaras.”

A tourada é uma tradição cultural da civilização do sol que circundou o Mediterrâneo. Já os cretenses a praticavam e com ela ilustraram as paredes de Cnossos. Sintetiza, no umbigo do mundo que é a praça, valores de esforço e coragem, momentos de alguma astúcia e de certa loucura, laivos de petulância e cores de tragédia. Marialva? Sim, sem dúvida. Mas nós, portugueses, somo-lo no melhor sentido que a palavra pode ter. Leiam a “Ilustre casa de Ramires” e percebam: nós somos assim. E, de certo modo, ainda bem.


Repito, regressando ao primeiro parágrafo, que não sou aficionado. Mas sou filho de um filho da Barquinha que, não sendo ele próprio aficionado, sentia a tauromaquia como parte essencial do ser ribatejano, da sua memória e da sua cultura. Por feliz coincidência ou talvez não, a sua última ida a um restaurante foi ao Redondel, sob a bancada da praça de touros de Vila Franca de Xira. Que outros não gostem, tranquilo. Que critiquem, perfeito. Que se achem no direito de impedir, de proibir e, pior, de se achar mais espertos, já me aborrece como protótipo de mentalidade fascistóide.

Este vínculo, umbilical e sanguíneo, entre o Ribatejo e o mundo taurino, encontrem-no em Miguel Torga, num capítulo belíssimo do seu “Portugal”, que assim termina: “Na sua planura fofa e ubérrima, na melodia dos seus chocalhos e na harmonia da sua cor, a terra ribatejana é um grito de felicidade incontida no corpo da tristeza lusa. É uma faixa escarlate e festiva à cinta de Portugal.”

2 comentários:

PW$$$ disse...

Curiosamente, a Câmara de Cascais decidiu proibir as touradas... depois de ter demolido a Praça de Touros no Bairro do Rosário.
Quem sabe, se um dia o autódromo desaparecer, talvez proíba a poluição sonora. Quando os votos de boa consciência rendam mais do que as receitas de turismo.

Cumprimentos,
PW$$$
(habitante no burgo)
(signo sensível a bandarilhadas no lombo e a panos vermelhos)

NunoF disse...

Ou quando o valor dos terrenos do autódromo falar mais alto :-)