quarta-feira, junho 24, 2009

Uma história muito triste

No último exame nacional de Português do 12º ano, rapaziada que corre o risco de roçar já em Outubro o cu da calça e o cós dos “boxers” nos bancos da Faculdade de Letras recebeu em anexo a um texto que tinham que ler (para os que soubessem) um glossário que esclarecia o nebuloso sentido de palavras como “sumiu-se”, “carregadores”, “fardos”, “grilhetas” ou “temor”. O temor com que fico é que estes meninos, manietados pelas grilhetas de um sistema de ensino que não os prepara, tenham que carregar pela vida fora o fardo da sua ignorância, fazendo sumir-se qualquer hipótese de que este país seja algo mais que o “Inatel da Europa”, como dizia o outro…

Não sei se na prova de matemática os futuros engenheiros receberam uma tabuada para os ajudar nesse passo mais difícil que costuma ser o 7x8 ou se, na de história, uma nota de rodapé lhes lembrava que Afonso Henriques constava como primeiro rei cá da paróquia. Suspeito que alguma magnanimidade deste calibre terá havido.

Porque enfim, “fardo”, não brinquemos. Se falássemos de “diglossia”, “pomologia” ou “testilhar”, ainda se compreendia a urgência do ministério em disponibilizar um dicionáriozito, não fosse a malta pensar que “testilhar” significa pôr os “testilhos” a uso. Mas “carregador”? “Ó mai gode”, como terão provavelmente escrito no teste de inglês.

Vamos por mau caminho. Em 1308, D.Dinis teve que enviar os estudantes de Lisboa para Coimbra, por barulhentos. Se vivesse hoje teria que os mandar para onde houvesse bons pastos, por burros. Melhor dizendo, feitos burros, à sua revelia, numa das maiores sabujices organizadas com que alguma vez uma geração, a que tem agora cinquentas e sessentas, terá afligido a seguinte, a que conta hoje de trintas para baixo.

O decaimento da qualidade do ensino primário e liceal em Portugal é flagrante para quem tenha um mínimo de memória, bom senso e contacto com o sistema. Dou aulas a universitários, vai para dezoito anos. Não realizei nenhum estudo estatístico, mas a capacidade – e a vontade – de raciocinar, de expor ideias oralmente ou por escrito, de resolver problemas abertos, em que há que conjecturar um bocadinho, tem baixado a olho nu de ano para ano. Quando apresento uma resposta na aula, muitos se indignam: “Não tinha dito que se podia assumir isto ou fazer aquilo”. Apetece-me responder: “E quando estiverem com a namorada, não vão ter que pensar nalgumas hipóteses sobre como fazer as coisas? Ou vão ficar a olhar para o problema com essas carinhas?”

Com a agravante que estes meus espécimes fazem parte daquele grupo eleito que acabou o liceu com quinze de média ou mais. Pergunto-me como serão os outros. Mas também, com escolas com os entusiasmantes epítetos “C+S” ou “EB2,3”, do que é que estávamos à espera? De Einsteins, se calhar…

A seguir ao 25 de Abril, o país cresceu economicamente e criou as condições para alargar a oferta de ensino a toda a população. O analfabetismo diminuiu, as populações liceal e universitária aumentaram, o número médio de anos de escolaridade cresceu. Resultados muito positivos, mas insuficientes, sobretudo se quisermos atravessar o século XXI num vagão de primeira classe. Tal porque, ao querer aumentar a quantidade, se descurou a qualidade, presumivelmente por um preconceito de que ser-se minimamente exigente era reaccionário e elitista. Erro! Antes pelo contrário.

Contando uma história: quando o meu irmão se doutorou por uma universidade inglesa, fui assistir à cerimónia, com pompa e fanfarra, em que outorgam lá as togas garridas e aqueles quicos com berloques prá cabeça. Na sua alocução solene, o reitor, do púlpito, dirigindo-se a seiscentos novos bacharéis, licenciados, mestres, doutores e “tutti quanti”, começou por perguntar-lhes:

- Quantos de vocês tiveram os pais na universidade?

Um quinto, talvez um quarto, levantou a mão. Prosseguiu:

- E quantos de vocês tiveram os avós na universidade?

Menos de uma dúzia de dedos se viram.

- Então, posso concluir uma de duas coisas. Ou os vossos pais e os vossos avós eram mais estúpidos que vocês ou então vocês tiveram mais oportunidades do que eles. O papel de uma universidade é o de criar oportunidades. Esta universidade foi fundada no século XIX por socialistas utópicos que acreditavam ser possível que os filhos dos operários fossem para a universidade e não apenas os daqueles mais afortunados que os podiam enviar para Cambridge ou Oxford. Na altura, esses disseram-nos: “Ides baixar o nível”. Nós nunca baixámos o nível, mostrando que qualidade e quantidade podem coexistir, se formos exigentes. Só a exigência é igualitária.

Lembro-me de ter saído de lá a pensar que este discurso deveria ser gravado e repetido continuamente e em volume elevado em todos os gabinetes e corredores da 5 de Outubro, do ministro ao contínuo, do nascer ao pôr-do-sol, na esperança ténue que algum sentido pudesse entrar naquelas cachimónias.

Porque de facto só a exigência é igualitária. O que nós temos tido em Portugal é o contrário: um sistema do mais elitista que há, em que a escola republicana abdicou da sua vocação correctora das desigualdades sociais e, pelo contrário, amplifica-as, permitindo que as elites se criem não pelo mérito e pelo esforço mas sim tendencialmente pela hereditariedade. Por outras palavras, aqueles que recebem a cultura em casa, porque os pais a têm, ou em escolas privadas, porque os pais pagam, ganham uma vantagem competitiva, injusta mas fatal como o destino, no acesso à universidade e, depois, ao longo da vida profissional. As poucas excepções que há confirmam a regra e os únicos que não vêem são o ministro e o ministério que lá vão, alegretes, garantido em panglossianos comunicados e entrevistas que tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos. O Salazar deve estar a gozar o prato…

Esta desigualdade nota-se logo. Na vida empresarial, uma pessoa jovem que saiba não apenas pensar, mas também vender o seu pensamento, falando ou escrevendo, focando-se no essencial, com capacidade de síntese, essa pessoa sobe depressa porque se faz notar. Em terra de cegos, quem tem um olho é rei. Hoje, numa companhia, pede-se a alguém de menos de trinta anos que redija um texto, com um certo propósito, com um dado tom. Na enorme maioria dos casos, temos que reescrevê-lo para que se perceba pelo menos o que se pretende escrever. Quando tal não acontece, facto raro, estamos na presença de um provável futuro director. Claro que estas diferenças podem eventualmente resultar de talento. Mas, com maior probabilidade, terão por causa um diferencial de competências, adquiridas por um e não por outro, possivelmente em casa que o liceu não se deu a esse trabalho.


E agora, já vamos tarde: foram muitos anos a tratar os garotos deste país como atrasados mentais, a dar anúncios do Big Brother no lugar do Camilo ou Pessoa, a não ensinar integrais nem probabilidades, a responder em história e filosofia a perguntas curtinhas de saber livresco em vez de escrever boas dissertações com princípio, meio e fim, tese, antítese e síntese. Em resumo, a sabotá-los, a não querer pedir-lhes tudo aquilo que eles têm de bom para dar, que sempre têm. E depois inventou-se muito: alterações permanentes dos programas, mecanotecnias e cenas afins, projectos de “área-escola” e outros excelentes pretextos para não abordar, de forma que se veja, português, matemática, história, física, línguas, enfim, coisas que formem, por chatas que sejam.

Se quisermos pôr isto tudo no são, só com muito choro e ranger de dentes, que já não vamos lá com “soft landings”. Terá que infelizmente ocorrer um choque, com uma subida brusca dos níveis pedidos, chumbos maciços durante uns tempos e umas fornadas de jovens sacrificados à incompetência do actual sistema.

E antes haverá que resolver o problema do ministério da educação e dos seus pedagogos, pedagogias e pedagogismos. Discute-se muito a valia de investir no novo aeroporto de Lisboa ou nas linhas de TGV. Se sobrar algum dinheiro, um investimento de interesse nacional e retorno garantido seria o de pagar àquela malta do ministério para ficar em casa, sem fazer nenhum e sem tocar em nada, tal e qual o macaco da anedota.

1 comentário:

NunoF disse...

Uma outra questão - que não abordas mas devias abordar - é que mesmo que tenhas essa cultura, a capacidade de te exprimir, os conhecimentos necessários e a mente treinada para os utilizar, não vais ser promovido porque o tal membro do grupo eleito que acabou o liceu com quinze de média ou mais é primo do tio do secretário de estado cujo pai joga golfe com o administrador da empresa que, é claro, faz o jeitinho de promover o filho em detrimento do filho do pedreiro ou e da mulher a dias ...

Que adianta ter mais e melhor educação, se no Portugal de hoje continua a valer quem conheces, com quem te dás e que cunhas conheces meter?

Em 25 de Abril de 1974, mudou-se o regime, mudaram-se as leis, mas não se mudaram as mentalidades.
Na cabeça de quem fez a revolução, na dos seus filhos e netos, o modus operandi do Estado Novo continua a imperar.