sábado, maio 02, 2009

A História aguarda à esquina (de naifa afiada)

Em 494 a.C., quando a nobreza patrícia que liderava a jovem república romana mandou a plebe pegar em armas para defender a cidade que vinha aí malta mal intencionada, aconteceu aquilo a que hoje chamaríamos uma greve. Os cidadãos de Roma pousaram as armas, entrincheiraram-se na colina Aventina e recusaram-se a combater. Em vez de reclamar um maior acesso aos lugares de topo do Estado (os consulados), os populares criaram uma estrutura paralela, encimada pelos tribunos do povo, e o conflito só acabou quando estes tribunos foram reconhecidos pelos patrícios como parte integrante do sistema político da república.


A partir daí e até o império acabar com essas liberalidades já na nossa era, o povo e o senado constituíram duas fontes de poder rivais mas interligadas e intermutáveis: em 172 a.C., os dois cônsules escolhidos pelo senado eram plebeus e, pela inversa, muitos nobres, entre os quais o jovem Júlio César, foram eleitos tribunos em assembleia popular.


Esta esquizofrenia essencial do sistema político estava gravada, inclusive, nas insígnias romanas que ostentavam a águia e as iniciais SPQR, “Senatus Populusque Romanus”: o senado e o povo romanos.


Ora passeando há pouco por Roma, reparei que as tampas das sarjetas, que em Portugal ostentam as iniciais das câmaras municipais, arvoram aí a sigla SPQR. Achei estranho que essas orgulhosas letras, que antes levavam o terror aos povos que a máquina militar romana subjugava, levassem agora duvidosas águas residuais e mais os respectivos boiantes até às ETAR e emissários submarinos


Italianos explicaram-me, algo incomodados com o paralelo, que tal se devia ao facto da companhia das águas e esgotos ser camarária e que podemos encontrar as mesmas iniciais nas fontes. Tive oportunidade de passar na afamada Fontana de Trevi, mas não vislumbrei nenhuma placa SPQR, embora admita que os dez mil japoneses que circundavam a fonte, disparando “flashes” aleatórios, não ajudaram a minha pesquisa. Agora tampas de sarjeta, pisei-as por toda a cidade, sempre com o SPQR em garboso relevo, silenciosas sentinelas dos mais obscuros fluxos e refluxos urbanos.


Às vezes, querer recuperar, à força toda, os esplendores históricos leva a situações destas. O que é hoje a Itália foi, durante mais de meio milénio, a super-potência mundial. Já não é. Quando olhamos para cima, para o Coliseu ou para as termas de Caracala, ainda agora impressionantes, e depois baixamos os olhos e vemos o SPQR no redondo dos bueiros, não podemos deixar de achar irónico. As tampas dos esgotos do município romano não suscitam memórias de grandeza antiga. Realçam, à evidência, a diferença entre o antes e o depois.


Num exemplo ainda mais flagrante: quando olhamos para as pirâmides de Gizé, lá no local, se nos abstrairmos dos dez mil japoneses que circulam às “flashadas” por Queops, Quefren e Miquerinos, e das centenas de guias, dromedários, falsos guias, vendedores de pacotilha, meros cravas e outros chatos, até conseguiremos sentir o poderio dos faraós, telúrico, maciço, intemporal.


Mas se olharmos para trás e virmos o oceano de bairros degradados da periferia do Cairo, a perder de vista, todo em tijolo e tosco à vista, a aproximar-se sorrateiramente do perímetro de Gizé, a pergunta que nos fazemos é “como é que estes tipos, que viveram uma civilização gloriosa, caíram tão baixo?” E a sombra monumental das pirâmides só torna mais triste o triste dia-a-dia que se vive nas barracas com vista para uma das sete maravilhas do mundo.


Pelas costas das vizinhas, vejo as minhas, diz o adágio popular. Já não somos um povo de navegantes. Não caiamos no ridículo de comparar o Magalhães, computador, ao Magalhães, navegador, como faz a propaganda governamental. Andamos sempre com os descobrimentos na boca, como se a grandeza dos Gama e dos Albuquerque fosse fungível e se pudesse aplicar tal e qual ao anúncio do crescimento da colecta fiscal ou ao beberete de lançamento de um estudo de viabilidade de uma obra qualquer. Quando o fazemos, fazemos a figurinha dos romanos e das suas tampas de esgoto.


Claro que nos podemos envaidecer desse momento áureo do nosso percurso colectivo. E claro que é útil compreendê-lo. Escrutinar a nossa história dos séculos XV e XVI pode-nos ajudar a perceber porque lampejámos na altura e hoje sofremos na anomia. Se entendermos que, a montante da chegada a Calecut e da tomada de Malaca, existia uma ideia e uma estratégia, que houve a escola de Sagres e os almirantes Pessanha, a melhor cartografia e seguros navais inovadores, diplomacia cuidada e a Casa da Índia, para além de coragem, reflexão, alguma temeridade e uma certa sorte, vemos a diferença para os dias que correm, governados cada vez mais por escrivães de Bruxelas. O desígnio de educar as nossas crianças para o futuro, tratar dos nossos doentes com dignidade e proporcionar justiça nos nossos diferendos é tão nobre, ou mais, que a pimenta e a canela. Se o soubermos alcançar, mereceremos a comparação com os descobridores. Se não, é tudo mais conversa de tampa de sarjeta e a História há-de se rir de nós.


Porque a História é uma amante volúvel. Aquilo que em tempo dá, em tempo tira. É ela que define quais as memórias que permanecerão. Os que dela querem constar, o que têm a fazer é dar o seu melhor e esperar pelo julgamento. E os aprendizes de feiticeiro que pensam que a podem manipular correm o risco de lhes sair o tiro pela culatra.


Veja-se por exemplo o pai Bush, que não lhe chegando ter sido presidente, quis lançar uma dinastia, usando o seu peso político para promover o filho George W. a candidato presidencial, à conta de muito “marketing” e muitas explicações particulares de geografia (“…o Japão fica na Ásia, a Espanha na Europa…”). Eh, eh: pecado de orgulho… Oito anos depois o nome Bush ficou para a história, mas pelos maus motivos: indelevelmente ligado à ignorância, à arrogância e ao fracasso de um momento menos feliz dos Estados Unidos.


Quando já ninguém se lembrar que existiu um presidente George H. Bush, ainda o nome Bush perdurará no anedotário, associado à burrice como instintivamente associamos César ao génio militar, Pol Pot ao horror da tirania ou Einstein à inteligência superior. O nome Bush permanecerá também, pelo menos por uns tempos, na palavra “Bushville”, que designa os campos de tendas que abrigam os novos descamisados da crise de 2008 e substitui a velhinha “Hooverville” da crise de 1929. Honrosa distinção. Grande galo!


“Mais valia terem estado quietos!”, há-de dizer a História que, como tem todo o tempo do mundo, esperou calmamente pelos Bush atrás de uma esquina, para lhes mostrar depois quem manda e aplicar o seu veredicto final: “Queriam a eternidade? Pois vão tê-la, mas à minha maneira.”

Sem comentários: