segunda-feira, maio 25, 2009

O menino do rio

Trezentos e sessenta e cinco dias depois…


A campa do meu pai nasce na serra de Albarracín a mil e seiscentos metros de altitude e desagua no mar à vista de Lisboa.


Pelo caminho, ainda em Espanha, banha Toledo, Aranjuez, Talavera de la Reina e depois, já cá, Almourol e Santarém. Tudo nomes que recendem a lembranças de taifas mouras e escudos cristãos, de cujo embate nasceram nações, como Portugal, e modos de ser, como a hombridade, virtude tão ibérica que caracteriza quem meramente faz aquilo que deve ser feito. Que assim seja não será uma coincidência.


Como lápide serve-lhe uma rocha triangular, quase plana, tosca, empoleirada no lameiro da margem junto ao antigo cais da Barquinha, num sítio em que o Tejo se espelha no céu molengão da lezíria. Aí, onde em menino brincou, a seu pedido o deixámos sossegado. Há dias, numa visita que lhe fiz, sobre essa mesma pedra um pescador domingueiro gozava o seu momento de triunfo. Sentado num banquinho de lona, a cara vermelhucha rasgada por um sorriso glorioso, enrolava placidamente o carreto, a guita tensa e saltitante sob o peso do peixe gordo que, passados minutos, já estrebuchava na cesta. Metros à frente, colegas de vício, segurando a cana imóvel, miravam com olhar enciumado o sucesso do comparsa. Pedra sortuda, portanto.


Dissemos até à próxima e subi a pequena rampa que se debruça sobre as águas. A poucos metros, junto à primeira árvore da alameda que leva ao casario do centro da vila, um rapaz roubava um beijo à rapariga que, enlevada, se deixava roubar. Um pouco mais à direita, ao fundo, num relvado para lá do ribeiro onde uma rã ocasional soltava um coaxo periódico, miúdos jogavam à bola e os seus gritos entusiasmados reforçavam o silêncio daquelas três da tarde. Tudo no seu lugar, como se uma dona-de-casa cósmica ali tivesse estado a espanejar e a arrumar “bibelots”. Como um quadro do Monet ou do Seurat, só que sem as manchas e as pintinhas.


Boa lembrança teve quando nos informou que é ali que quer estar. Houve na família quem estranhasse, mas ele, que é homem de bom gosto, insistiu, determinante. E vê-se agora que bem: de facto, não há comparação possível com as Massamás funéreas em que se acotovelam os mortos deste país, empilhados na morte como empilhados viveram. Avisada escolha.


Dirigi-me ao coração da vila, à rua onde ele morara. Lá de mim para mim, interrogava-me sobre as razões profundas desta escolha. Todos nós somos uma sucessão de etapas no contínuo do tempo. Sonho ou surpresa de amor, embrião, feto, nascituro, bebé, criança, adolescente, jovem, adulto, maturado, velho, finalmente memória na memória dos outros, tudo isto somos sucessiva e, de uma forma esconsa, simultaneamente. No caso do meu pai, quando toda aquela sucessão de gente se pôs à conversa a ver onde queria repousar, a voz que falou mais alto foi a da criança, de um menino do rio, daquele rio que continua o mesmo rio por muita água que lá tenha passado. Aliás, se por acaso existe um sítio para onde se vai depois da morte, o meu pai lá estará com o Parménides e o Heraclito, a assistir à sempiterna disputa, ouvindo muito e falando pouco, como tem por hábito, e a dar razão ao primeiro: o rio é o que é, independentemente das diferentes águas que lá escoam. Como as coisas na vida são o que são, não obstante os detalhes ou os devaneios que nos distraem do essencial.


Nestas meditações, vi-me na praceta onde, como em todas as pequenas vilas, se evocam os filhos da terra que não regressaram da Primeira Guerra. Aí, cheguei à conclusão que não conhecia aquele menino, o do rio. Algumas fotografias naquele preto-e-branco cálido dos anos quarenta, uma ou outra história, por regra anedótica, que lhe ouvira a ele ou à minha avó, e pouco mais. Induzia dessas poucas memórias que tivera uma infância feliz, mas nada sabia dele: a que brincava, de que pratos gostava, quais as pequenas alegrias e tristezas que vivera. Aquela criança, cuja opinião vergara todas as outras na hora de uma decisão tão grave como a de onde passar a eternidade, era para mim uma desconhecida.



E do homem, que sei eu? Eu e o meu pai andamos nisto juntos vai para quarenta e seis anos. Há muito dele que desconheço, porque a nossa intersecção no tempo físico não deu para tudo. Foi mais ou menos a normal entre pai e filho, apenas um pouco mais curta do que ambos gostaríamos. É sempre curta demais quando as coisas correm bem… Lembro-me do adulto, embora numa recordação já desfocada pelo tempo e algo enviesada pelo olhar feliz de criança – ou muito vagamente rebelde de adolescente – imagem que tenho que reconstruir com o auxílio da minha própria vivência adulta. Recordo, vividamente, o homem maduro ou já idoso (não sei bem), o avô sereno, o companheiro dos últimos tempos. Até porque com esse encontro-me todos os dias.


Verdade. Vemo-nos mais hoje do que dantes. Curiosamente, ele, que sempre se assumiu como pessoa de muito recato, que fazia cerimónia até a visitar os filhos e as casas onde sempre foi bem-vindo, telefonando antes a perguntar se podia, passou a aparecer quando lhe dá na gana e sem avisar as hostes. Para o que lhe havia de dar agora! Basta eu distrair-me e lá vem ele, das maneiras mais diversas: uma memória repentina, uma imagem, uma voz, um riso, às vezes uma lágrima teimosa. Ou muito simplesmente uma presença na minha mente, indefinível mas incontornável. Na rua, aqueles que se preocupam a achar coisas dos outros tomam-me por maluco: “Olha! Aquele vai a chorar sozinho”.


Exemplifico. Neste Agosto, no último dia das primeiras férias depois da sua morte, enquanto carregava o carro, de cada vez que olhava para a porta da casa lá estava ele de mão na ombreira, com ar de gozo. Explico porquê: costumo alugar uma casa na costa alentejana para as férias de verão e ele passava sempre dois ou três dias connosco. Da primeira vez, quando vinha a caminho, eu telefonei-lhe, insistindo:


- Vou buscá-lo à entrada da aldeia, que é difícil dar com isto.

- Tá bem, quando estiver mais próximo ligo.


Passada meia hora, ouvi os miúdos aos berros, desarvorando escada abaixo. “O avô! O avô!” Olhei e vi-o todo desportista, saco a tiracolo, braço esticado e mão apoiada no arco da porta, o sorriso discreto mas jocoso: “Com que então não conseguia cá chegar? Vocês julgam que os ribatejanos são saloios mas os saloios são de Lisboa.” Toda a razão: da Malveira e de Caneças, às portas da capital.


Surge-me amiúde nos momentos mais aéreos, nos corredores plásticos dos aeroportos, cheios de passageiros e vazios de gente, nas filas de trânsito que serpenteiam por caminhos conhecidos, transportando mundos isolados em carapaças metálicas, nos passeios de Lisboa quando os percorro sozinho, cabeça baixa, seguindo as ondulações da calçada e os pés dos transeuntes, frenéticos e separados do corpo. Olá, estás aí? Ele não me responde, embora apenas do modo a que eu estava habituado. Deve lá ter a sua técnica, porque a cada encontro fico com a sensação de o ir conhecendo cada vez melhor.


Há um ano e meio julgava eu que sabia quem o meu pai é, mas julgava erradamente. Nestes dezoito meses, desde que a doença se anunciou até hoje que faz um ano que não lhe apeteceu mais aturar as maleitas do corpo, tem-me ensinado muito sobre ele e sobre a vida e sobre muitas – mesmo muitas – outras coisas.


No hospital, então, sentou-se de cátedra e foram umas a seguir às outras.


Pediu que lhe levassem o portátil e ainda tentou escrever um artigo que tinha prometido a uma revista de hotelaria, mesmo quando a doença já não o deixava teclar e lhe levara o entendimento de como funcionava um sistema operativo. Tentou tratar pelo telefone de assuntos do banco que já não conseguia certamente dominar, preocupado que estava com o bem-estar da minha mãe. Nunca faltou com o agradecimento ou uma palavra educada ao pessoal que tratava dele, até quando já quase não tinha fala. Ora um homem que se encontra internado com o mal de que ele padecia numa unidade de cuidados paliativos tem à sua disposição a melhor justificação do mundo para não fazer nada disso: está a morrer. E aqui uma primeira lição: ele nunca usou essa desculpa, a maior possível, porque simplesmente não há desculpas para não se fazer o que se espera de nós ou para não pensar nos outros ou para não se ser gentil. Simplesmente não há.


Outra: perdera o domínio de uma das pernas e a minha mãe tentava movimentá-lo, pedindo-lhe para mexer a perna boa. E ele, com um sorriso que estou a ver daqui, vencendo a dor, pousou carinhosamente a mão no joelho da minha mãe e sussurrou, discreto mas audível: “perna boa é esta”. Segunda lição: podemos perder o uso de uma perna, ou até das duas, mas só deixamos de ser gente quando perdemos o uso do humor.


Outra ainda e mais derradeira, em duas aulas sucessivas. Dias antes do último, ainda assistiu na televisão ao seu Sporting numa final da taça, abraçado durante os noventa minutos a um dos netos. Já não conseguia seguir o jogo, nem sequer distinguir as equipas, mas sabia que era o seu neto que ali estava e sabia do abraço que lhe dava. Depois, horas antes daquilo a que chamamos por abuso o fim, quando lhe fui desejar uma boa noite e lhe segurei a mão, puxou-ma tenuemente até aos lábios, como quem esboça um beijo, com o sorriso possível e o brilho nos olhos de sempre. Terceira lição, magistral, sobre o que há de mais essencial na natureza humana. Já se tinham ido a capacidade de raciocinar, de falar, de andar, até de comer. Mas a capacidade de amar ainda lá estava e foi a última a partir, se por acaso partiu. Talvez ainda haja esperança para nós enquanto espécie.


Finalmente, se calhar cansado de tanta matéria que nos deu, aproveitou uma aberta de sol num dos Maios mais chorosos de que há memória e fechou os olhos, deixando-nos para aqui um bocado desasados.


Nos dias seguintes, passámos pela lufa-lufa das condolências, da funerária, das cerimónias. Nesses mesmos dias, fui sabendo mais sobre ele, mais do que até ai pensava. Nas lágrimas de homens que eu não imaginava tão próximos, nas vozes embargadas que ao telefone procuravam a palavra certa, na enchente da igreja, nas mensagens vindas de longe.


E passado um ano sobre estes acontecimentos, continuo a inteirar-me melhor, dia após dia, do homem que o meu pai … Espera! O menino do rio! Com esta conversa esquecemo-nos dele! Por onde andará?


Acho que sei. Parece-me vê-lo às vezes quando chego a minha casa ao fim da tarde. Encontro-o sentado no sofá, a beber um “nesquick” e a jogar na “playstation”. Vira para mim uma cara igualzinha à das tais fotografias naquele preto-e-branco cálido dos anos quarenta e cumprimenta-me, numa voz de entusiasmo infantil: “olá, pai!”


Nessas alturas, percebo finalmente o que ele quis dizer com as últimas palavras que por interposta pessoa nos dirigiu, na sua própria missa de corpo presente:

- Como vêem, está tudo bem…

4 comentários:

Alex disse...

Primeiro pensei que, desta vez, deveria ficar calada
Depois senti aqui uma coisa que quero dizer para não me ficar cá dentro

Quem ama assim tem sempre Luz,
Quem é amado assim tem sempre Luz
Vós sois dois seres luminosos
(por tanto)
Está tudo bem

Um beijinho

Cristina Rodo disse...

Carlinhos... AMEI este teu post.
Não queria deixar de to dizer. ;)
Bjs
C

PW$$$ disse...

Voe o tempo, mas fique a memória
Dos dias felizes e do secreto sorriso
Partilhado por pai e filho numa estória
De admiração, paz e carinho conciso.

Onde quer que ele esteja, deve ter lido.
E, apesar de não o conhecer, tenho certeza que apreciou a homenagem do filho.

Abçs.

Unknown disse...

Carlos que texto(s)! Como dizemos na academia "Profundidade na simplicidade". Também te digo que passou a estar comigo todos os dias, em muitas horas. vejo-o nas mais obtusas situações nas ridicularias de um conselho científico universtário sentado ao fundo da assembleia a rir, ou numa situação caricata de uma prótese que salta para o chão do consultório! Mas vejo o também em nós em mim em ti nos teus e nos meus filhos, nos teus textos sem dúvida. O grande amor que nos deu toda a vida. está neste texto como naquele em que falas do André e da tua nuvem negra ( e peço te perdão mas como médico devo dizer-te que isso tem um nome científico: hipocondria fóbica a roçar a paranóia) como está na parte final desse texto em que falas das crianças. Deixo te esta lembrança em que um dia era eu miúdo um motorista da carris me esbofeteou, e "to cut a long story short" após várias diligências, cartas para a Carris e muito investimento pessoal num Portugal então muito mais desorganizado que o de hoje, lá acabou por haver um inquérito e um inspector da carris lá em casa que perguntou ao Pai, "deseja pois apresentar queixa contra o motorista?" Ao que o pai respondeu contra tudo oque seria normal neste mundo de acusações, direitos, chica espertice e indemenizações decorrentes "não! apenas que lhe transmitam que as crianças não se educam com porrada mas sim com amor", cresceram me mais duas vertebras na espinha dorsal, nesse dia em que aprendi muito! Era assim o pai, que saudades! bem hajas!
Um abraço do António