sábado, abril 18, 2009

They ID

Acabei agora de voltar de Washington. À saída, uma hora e tal de auto-estrada até ao aeroporto de Dulles ilustrou-me o bom que vai ser ir apanhar o avião a Alcochete, esperemos que daqui a uns bons e muito largos anos. Lá chegado, com uma fome esganada e três horas de espera pela frente até abrir o balcão do meu voo, sentei-me no único restaurante existente antes da “security”, um daqueles tromba-rijas americanos orientados para o obeso médio, de nome Harry’s ou Tommy’s ou coisa que o valha.

Pendurado na parede por trás do balcão havia um cartaz informando a clientela que “we ID all customers”. Na minha ingenuidade, pensei ser decorativo, como aqueloutros dos anos cinquenta, de anúncios à Coca-cola ou às torradeiras da General Electric, que atapetavam as paredes. Por isso fiquei de cara à banda quando a empregada, estendendo o menu, me pediu a identificação. Também ela tinha, pendurado na lapela, um crachá que afirmava “We ID”.

Vi-me num dilema. Claro que é vergonhoso aceitar sem soltar um basqueiro enorme que um restaurante tenha sequer a lata de me pedir os documentos. Mas, por outro lado, se não mostrasse a papelística, não comia. O meu cérebro acabou pois por se sujeitar à hierarquia de Maslow e pôs a satisfação das necessidades básicas à frente das considerações intelectuais: passei-lhe caninamente o passaporte e mandei vir uma sandes cubana e uma cerveja. Consolei-me com a desculpa de, em países exóticos e terceiro-mundistas, um tipo normalmente fazer umas habilidades que em casa nunca lhe passariam pela tola.

Mas agora, e sem querer ofender ninguém: há coisas em que estes americanos são mesmo atrasados mentais! Anseiam por um mundo tão regrado, tão procedimentado, tão chato que perdem a noção do ridículo.


Como aquelas questões a que há que responder com cruzinhas, nos formulários verdes que distribuem nos aviões, para apresentar à entrada do país: “Pretende vir traficar substâncias ilícitas?” ou “Esteve envolvido em crimes de guerra pelo regime nazi ou seus aliados?”. Eu, para ter sido membro das SS, teria que ter próximo de noventa anos. Só me surpreende não perguntarem também se estive na batalha de Pittsburgh, e se pelos confederados.

Será que as autoridades fronteiriças americanas esperam, genuinamente, que alguém diga que sim a uma interrogação deste calibre: “Vem com intenções de praticar actividades criminosas ou imorais?” Não, não venho torturar presos em Guantanamo, nem ganhar eleições à socapa, podem ficar descansados. E se forem actividades imorais, mas não criminosas, também não se pode? Quem define? De facto, os requisitos daquele formulário emparelham bem, na lista de perguntas que qualquer pessoa com dois dedos de testa não faz, com as clássicas “O peixe é fresco?” e “Foi bom?”.

Passemos sobre o detalhe deste género de números ser mais próprio de regimes fascistas do que de faróis da humanidade. A obsessão com a identificação é um expediente clássico dos governos totalitários para se perpetuar: transmitindo a impressão que se procura um inimigo incerto, legitima-se a própria repressão. Os Estados Unidos não são um regime opressivo, mas foge-lhes muito o pé para a chinela.

O que acho mais relevante é assinalar o que isto significa: medo. Sinto na sociedade norte-americana um cerco, mormente por si própria. Com medo dos estrangeiros, dos gangues dos maus bairros, dos emigrantes de hábitos estranhos. Com medo de um mal estrutural, perverso e gratuito, que abunda nas séries policiais de “prime time”, onde a eficácia dos heróis resolve os problemas, seja por que via for. Um medo, ao qual se responde com armas, que geram tentações e respostas e ainda mais medo. Um medo, sobretudo, inútil: não é a cambiar passaportes por hambúrgueres nos restaurantes nem a fazer perguntas tolas aos turistas que se livram de um novo 11 de Setembro. Para mais segurança, talvez conviesse não armar as Al-Qaedas deste mundo sem pensar nas consequências, como fizeram no Afeganistão dos anos oitenta ou então estabelecer pontes, sacrificando os interesses imediatos em troca de estabilidade futura. E deixarem-se de parvoíces.

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