sábado, abril 11, 2009

Funny feeling

No outro dia, festa de aniversário, numa discoteca à beira-Tejo. O espaço, amplo, tentava mitigar a opressão que induziam a pouca iluminação e o som pesado, distorcido, excessivo para a potência da aparelhagem.

A dado momento, ouvi, vagamente, um amigo que me berrava ao ouvido, em luta desigual com o “house” que bombeava das colunas:

- Aquele não é o xis? – perguntava, apontando para um homem de pé, junto a um pilar, distraído a olhar os dançantes.
- É capaz! - respondi, gritando.
- Vamos lá falar-lhe?
- Deixa estar.
- Mas vocês não se davam muito no liceu?
- Dávamos. E ele ia a minha casa.

O meu amigo não insistiu. Mas vi que estranhou. E eu também me estranhei a mim próprio, confesso. Fiz, no entanto, aquilo que na altura me apeteceu.

O xis, na época em que terminei o liceu, integrava o grupo dos meus amigos mais próximos. Éramos meia dúzia e durante um ano vivemos tudo juntos, preparando-nos para a universidade: estudámos, bebemos copos, saímos à noite, voltámos a estudar, jogámos à bola e aos matrecos, fomos a festas, entusiasmámo-nos por uma saia (ou por umas calças de ganga mais apertadas), marrámos mais um pouco.

O xis aparecera em Setembro, chegado do estrangeiro. Os restantes, já lá andávamos há anos. Não conhecia ninguém e rapidamente o integrámos. Vinha muito polido: ao princípio, apresentava-se nas aulas de ginástica vestido de branco da camisola ao soquete, contrariando a algazarra de cores das nossas “tee-shirts”.

No início, brincávamos com ele, como daquela vez em que, conjuntamente, o tentámos convencer que a saliva podia provocar gravidezes indesejadas. Ele, claro, suspeitou. Para o fazer ceder, desafiámo-lo a perguntar ao professor de biologia, um tipo bestial, recém-licenciado, com quem os alunos sentiam suficiente confiança para fazer perguntas destas. E que nós já havíamos industriado previamente. Quando abordou o docente, este confirmou-lhe tudo, num discurso recheado de tecnicidades como “amilases” e “ARNs” e recomendou-lhe, paternalmente, que tivesse cautela. Ainda andou uns dias convencido, parece-me. Mas rapidamente, connosco, limou esse excesso de inocência. E não brincámos mais, porque já não era preciso.

Certo dia, a meio do ano, insistiu que fossemos todos almoçar com o pai dele. Encontrámo-nos num restaurante que, para mim, à época, era de um luxo nunca frequentado. Eu sabia que o xis nascera numa das famílias mais ricas de Portugal, embora no nosso quotidiano escolar tal fosse indiferente. Ele apresentou-nos ao pai (“Pai: estes são os meus amigos.”) com o mesmo entusiasmo que no-lo apresentou a nós (“Este é o meu pai!”). O xis tinha grande orgulho no pai, pelo que senti que aquele tratamento biunívoco provava uma grande consideração por nós. Recordo ter ficado contente. Diria, à distância, que grato.

Findo o liceu, deixei de ver o xis, contrariamente ao resto do grupo, com o qual ainda me dou. Fui sabendo algumas coisas dele por terceiros e pelos jornais: licenciara-se, assumira mais tarde a presidência da empresa familiar, frequentava os mais restritos meios económicos e financeiros do país.

Reconheci-o uma vez num centro comercial. Ele pareceu não me ver, seguindo o seu caminho. Eu também estava com pressa. Presumi que nos desencontráramos.

Mais tarde, encontrei-o numa cerimónia inaugural de uma obra da companhia onde eu trabalhava, da qual eu fora responsável. A empresa a que ele presidia participara na construção. Fui cumprimentá-lo. Disse-me apenas, num tom que achei de frieza: “Tás bom? Tás a trabalhar com fulano, não é?” O fulano em questão era o presidente da minha companhia, segundo a imprensa um amigo dele. Ainda esbocei um princípio de conversa, mas percebi que não havia grande resposta e, com o pretexto de ir posar o copo, fui à minha vida.

Recordo, por contraste, que pela mesma altura visitei um clube de “jazz”, com dois antigos companheiros desse grupo de liceu, para ver um concerto de um antigo contemporâneo da mesma escola, o ípsilon, que fizera carreira na América como músico. Fomos pela curiosidade, porque o ípsilon não fora rapaz com quem nos tivéssemos dado muito. Partilháramos o mesmo recreio, as mesmas salas de aula, mas pouco mais. Tínhamos interesses muito diferentes.

Chegámos atrasados, já a banda dele tocava. Pois o ípsilon, quando terminou a primeira parte, saltou do palco, veio à nossa mesa, abraçou-nos, falou da sua família, dos muitos anos da sua vida americana, quis saber de nós, de outros colegas comuns e ainda pediu desculpa porque tinha que regressar para a segunda parte.


Voltando ao xis, acabei por descobrir mais alguma coisa sobre ele num artigo que saiu num revista hebdomadária, num daqueles textos desenhados pelos consultores de imagem, que vendem gestores e depois vão vender lixívias. Mas ainda assim consegui nessa leitura saber dele o que ele em pessoa não me dissera: com quem se casou, onde mora, quantos filhos tem, que “hobbies” pratica, quem são agora os seus influentes amigos.

Provavelmente por isto tudo, não me apeteceu falar-lhe nessa noite. Segui o meu coração, mas, vasculhando os recantos da minha caixa craniana, concluo que a cabeça faria exactamente o mesmo. Admito que possa haver aqui algum ligeiro despeito, mas a minha amizade merece-se. Até por consideração para com aqueles e aquelas que a honram e que são uns quantos – e bons.

Em todo o caso, sinto-me feliz por ter estado presente na existência dele quando ele precisou de amigos. E não esqueço que ele retribuiu bem, na altura. Lá continua, de calças de ganga e ténis Adidas, nas minhas lembranças do que foi um dos tempos mais felizes da minha vida: os meus dezassete anos.

Não deixo de temer que possa estar a ser injusto. Que tenha interpretado mal. Os “quid pro quo” acontecem. Mas se for esse o caso, ele pode falar com fulano e fica a saber logo onde eu estou.


P.S. Este “post” não tem imagens, como normalmente. Não encontrei nenhuma que ilustrasse o meu estado de espírito.

3 comentários:

Alex disse...

Pois... Destas tocam-nos a todos, ou quase.
A Amizade não é um posto
Pelos primórdios dos meus 30 anos tive um insight (descobri a pólvora): quando se começa a ter uma vida que se coaduna com a maturidade (o que não é de todo o mesmo que ser-se maduro) há uma linha invisível que teima em colocar-se sob os nossos pés em diversas situações e que separará, ou não, a Pessoa que éramos da que viremos a ser... se a pisarmos. E, em regra, não se vai para melhor, no que se refere ao carácter, claro está. Por vezes a linha é ténue, por vezes as opções são conscientes, e, a maioria das vezes, tudo se joga num "bola prá frente" em nome de objectivo que se apresenta como sendo de prioridade absoluta; os Amigos ficam para trás, fazem-se amigalhaços, mas os que "ficaram para trás" pouco terão a perder.

Bem, fico-me por aqui, que diabo, o blog é teu...

PW$$$ disse...

Estranha coisa a amizade,
Que contra ventos e marés persiste,
E supera toda a adversidade,
E não se explica, apenas existe.

Não tem barreiras de credo ou idade,
A meio mundo de distância resiste;
E após uma década de saudade,
Um simples abraço, e o tempo desiste.

Mas o único inimigo que a invade,
É a dúvida que nos assalta e assiste,
Sobre se é um sentimento de verdade.

E para todo o sempre, que eu grite e brade,
Que na escuridão meu coração ficará triste,
Se não houver amigos para a eternidade.


PS: Obrigado pela inspiração para um soneto camoniano, CM.

:-)

Cristina Rodo disse...

Começo a perguntar-me se as Amizades da adolescência serão realmente amizades...
Umas serão, as que ficam. Mas da mesma forma que nessa altura vemos tudo a preto e branco (adoro/detesto - é lindoooo/é horrível) talvez também algumas das nossas vivências, apesar de reais, sejam empoladas e não tenham na realidade grande substrato.
Não sei...