domingo, outubro 28, 2007

O sentido do heroísmo

Um livro e uma recordação, ambos trazidos de Paris há uma semana, motivam este “post”.

O livro, uma bêdê de Jean-Michel Beuriot e Philippe Richelle, intitula-se “Maria” e é o terceiro volume da série “Amours Fragiles”. Série, cuja leitura recomendo, que nos conta a vida de alguns alemães no período que vai da ascensão do nazismo ao princípio da derrota na Guerra Mundial. Esta gente narra uma história um pouco diferente da versão maniqueísta dos manuais, em que os aliados são bonitos e bons e os alemães feios e todos uns assassinos nazis. Na realidade existiu uma resistência alemã contra o nazismo, e algumas das personagens de “Maria” travam essa luta desigual contra a máquina totalitária e contra a colaboração mesquinha de uma grande parte de um povo embrutecido pela propaganda.



Podemos dizer que os autores apresentam uma visão na essência pessimista, mas provavelmente ajuizada, sobre a natureza humana: somos tendencialmente e geralmente pusilânimes mas potencialmente e mais raramente sublimes. A capacidade de vergar a nossa tendência para materializar todo o nosso potencial tem que resultar de uma reflexão e de uma decisão nossas, que somos livres de efectuar ou não. Se o fizermos, perderemos algum conforto mas seremos provavelmente melhores pessoas. Àqueles que com grande sacrifício ou risco o fizeram, em momentos particularmente difíceis de perseguição ou guerra, damos o nome de “herói”.

A Maria do livro é uma heroína, sem capa e sem super-poderes. Mãe solteira, secretária de um consultório numa pequena cidade de província, faz aquilo que acha que é seu dever fazer, por amor da sua filha e do seu país. A Maria é uma personagem de ficção, mas representa com muita compostura muitas Marias e Mários que ao longo da História sacrificaram tudo pela liberdade e pela dignidade dos outros.

A recordação, essa, vem de um passeio de muitos quilómetros ao longo do Sena, numa sexta de sol e frio. Aqui e acolá, no chão, nas paredes, discretas, fustigadas da chuva e das solas de sapato, por vezes quase apagadas, plaquinhas relembram que “aqui morreu fulano, defendendo Paris dos normandos” ou que “aqui perdeu beltrano a vida lutando contra os alemães na libertação”. São centenas de pequenas memórias em chapa, lembrando outros tantos dramas e convidando quem passa a um segundo de reflexão. Lisboa, que tanto imita o mobiliário urbano de outras capitais, bem podia daqui tirar algum sentido.


Sou de uma geração que nasceu e vive num território cómodo, num tempo confortável. Gozamos de abundância, paz e liberdade. A fome e a guerra são realidades distantes, de presença meramente televisiva, que lamentamos mas que não nos tiram o sono. Raramente nos ocorre que esta vidinha boa foi construída sobre séculos de luta contra os perigos da existência e a prepotência dos senhores. Que, para que aqui chegássemos, sucessivas gerações construíram o nosso mundo e que homens e mulheres morreram para que a civilização avançasse mais depressa, ou não recuasse na direcção das trevas.

Que faríamos nós se nos víssemos na posição deles? Seríamos capazes de arriscar a vida por valores que achássemos certos? Que faria eu no lugar da Maria? Teria coragem para transportar panfletos contra Hitler, temendo a vigilância dos bufos da vizinhança e as torturas da Gestapo? Ou ficaria tranquilo no meu cantinho, e os outros que resolvessem a crise? Não sei.

Como não sei, acho que o mínimo que posso fazer, ou que podemos fazer, é não os esquecer. É lembrar o seu exemplo e mostrá-lo aos mais novos. É ter consciência de que a liberdade, a prosperidade, a nacionalidade ou qualquer outro bem imaterial de que beneficiamos não vêm à borla, e que podem de vez em quanto ter que ser defendidos. É perceber o enorme mérito que tiveram muitos dos nomes daquelas plaquinhas, gente pequena mas muitas vezes mais nobre de intenções que outra, a quem até erigiram estátuas. É estar, pelo menos durante alguns instantes, grato.

Se não o fizermos, de preguiça ou mesquinhez, roubaremos o sentido ao sentido que aquelas pessoas deram às suas vidas. E até às nossas. Dizia John Reed que há coisas grandes no futuro, pelas quais vale a pena viver e morrer. Nem todos podemos ser heróis. O heroísmo não é obrigatório. Mas o respeito e a gratidão são.

domingo, outubro 14, 2007

A longa e ventosa estrada

Em resposta a desafio de blogue amigo, fiquei de dissertar sobre os Beatles. Tarefa difícil para uma banda ou um fenómeno cultural ou social carequita de ser analisado, dissecado, venerado de todas as maneiras e feitios. Neste assunto é que não há mesmo nada de novo debaixo do sol.

Poderia ir gamar ideias à mais bonita homenagem feita aos Quatro, duas páginas de banda desenhada pelo traço de génio de Marcel Gotlib, de 1972, intituladas “ils étaient quatre”. Gotlib conta-nos que fez umas investigações na sua discoteca para responder à pergunta idiota que na altura se fazia: será o fim dos Beatles? Que concluiu ele? Que o sol de “Good day sunshine” continua a brilhar… Que o Bungalow Bill continua a caçar o tigre, com o elefante e com a mãe… Que o doutor Robert continua a curar toda a gente e que podemos continuar a confiar nele… Que o Rocky Racoon continua a bater-se em duelo com o Danny Boy para recuperar a sua mulher Magill… Que a morsa continua a declarar que vende ovos… Que o campo de morangos continua a não estar maduro no “Strawberry fields forever”… Que a rapariga dos olhos de caleidoscópio continua no torniquete em “Lucy in the sky”… Que em Penny Lane as crianças continuam a rir-se do banqueiro e do seu carro, sob o céu azul dos subúrbios… E assim sucessivamente…

Gotlib concluiu que não havia azar. Os Beatles continuam a ser os Beatles. As duzentas prendas que eles nos deixaram no sapatinho continuam a trabalhar que nem relógios suíços. Eu próprio confirmei este resultado, repetindo a experiência trinta e cinco anos depois e verificando que também funciona em formato digital. A Eleanor Rigby binária continua a apanhar os grãos de arroz na igreja deserta onde o padre Mac Kenzie escreve o seu sermão, passado que está vai para meio século.



Demonstrada a existência, pode-se também fazer prova da unicidade. Os Beatles são efectivamente únicos. Deixa-se a demonstração a cargo do leitor. Para o ajudar, alguns dados científicos sobre os Beatles:

Facto 1: Todas as músicas dos Beatles estão recobertas de cera, um lubrificante natural do canal auditivo. Por isso entram tão bem no ouvido.

Facto 2: Muitas canções dos Beatles libertam um gás volátil com o difícil nome de sin-propanetial-S-óxido, o qual em contacto com a água da mucosa dos olhos produz uma solução diluída de ácido sulfúrico que faz chorar. Tal ocorre, entre outras, com “In my life”, “Here, there and everywhere”, “She’s leaving home”, “The fool on the hill”, “You never give me your money” ou “The long and winding road”. Curiosidade: a cebola liberta o mesmo gás.

Facto 3: Muitas músicas dos Beatles induzem a produção pelo corpo humano de dopaminas (C8H11NO2) e oxitocinas (C43H66N12O12S2). As primeiras aumentam com a paixão e produzem uma sensação de prazer e as segundas estão relacionadas com as actividades afectivas. O ouvinte corre pois o risco de ficar apaixonado. São exemplos “Michelle”, “Yesterday”, “Norwegian wood”, “And I love her”, “Something” ou “I’ve just seen the face”.

Facto 4: A obra dos Beatles sofreu, a partir de meados da década de sessenta, uma tal aceleração criadora que se começaram a verificar efeitos relativistas. Tal como nos filmes de ficção científica em que o herói viaja à velocidade da luz e regressa à Terra no século XXV mas para ele só passaram três meses, muitas músicas dos Beatles chegam aos nossos dias frescas que nem alfaces, como se tivessem sido compostas por putos de Billabong e iPod. Veja-se “Taxman”, “Dr. Robert”, “Ticket to ride”, “Sexy Sadie”, “Get back” ou “Revolution 1”.

Facto 5: Pelas mesmíssimas razões que encontramos na base do facto nº 4, a música dos Beatles apresenta frequentemente um comportamento não-causal, aparecendo adiantada em relação ao seu tempo. Tal ocorre em “A day in a life”, “Fixing a hole”, “I’m only sleeping”, “Magical mystery tour” e em praticamente todo o álbum branco.

Facto 6: Em consequência do facto 5, o trabalho dos Beatles tem fortes propriedades magnéticas. Atraiu muita gente, que copiou descaradamente ou foi pelo menos fortemente influenciada, desde os Stones na época a muita da “pop” britânica de hoje.


Populares e geniais, generalistas e vanguardistas, mito e substância, os Beatles mudaram hábitos, mentalidades e gostos, fazendo música que fazia aquilo que a música é suposta fazer: ser importante na vida das pessoas. Foi importante na minha? Algumas vezes. Posso contar aqui uma história. Igual ou parecida à de milhões de outras histórias de outros colegas de planeta.

No Agosto dos meus dezoito anos, viajei de “inter-rail” e tive um daqueles amores de férias que são infinitos enquanto duram mas que só duram até à partida do próximo comboio. No dia da separação, estando eu já desfeito de saudades, com a obrigatória telha, o mundo desabado sob os meus pés, entrei para fugir a um aguaceiro num McDonalds em Graz, na Áustria. Aí, uma TV a preto e branco passava um desenho animado dos Beatles: “I’ll follow the sun”. E dizia:

One day you'll look and see I've gone,

For tomorrow may rain so I'll follow the sun.
Some day you'll know I was the one,
But tomorrow may rain so I'll follow the sun.

Olhei pela janela e já não chovia. Segui o sol. Até hoje…


Os Beatles foram possivelmente o grupo que mais marcou a minha vida. E mesmo hoje em dia, muitas vezes sou trazido de volta à longa e ventosa estrada que me leva até à sua (deles) porta.

sexta-feira, outubro 12, 2007

Quando a política apetece…

Nos últimos anos, alguns amigos de longa data, apanhados naquela curva da vida em que se olha para trás e se percebe que o caminho já vai a meio, têm abraçado a causa budista. Um desses, leitor ocasional deste blogue, costuma zurzir-me pela pouca introspecção e espiritualidade dos meus textos, muito dirigidos, segundo ele, para questões pouco nobres de sociedade ou de política. A porca da política…

Qual não foi pois o meu espanto quando ao entrar ontem no “website” da União Budista Portuguesa (UBP) me deparo com uma proposta para subscrever abaixo-assinados para pressionar o governo da Birmânia a respeitar os direitos humanos. Não me pude impedir de sorrir. Afinal, a política é a continuação da espiritualidade, só que por outros meios.

Obviamente, este súbito despertar activista não surge por acaso. Ocorre no momento em que a junta militar que manda naquele país esmagou à pancada um levantamento popular no qual o clero budista teve um papel extremamente relevante. De repente, a vítima ficou mais próxima: já não é o palestiniano que implora a passagem de uma ambulância num “check point” ou a mulher nicaraguense que morre de gravidez ectópica por proibição do aborto clínico ou o trabalhador nova-iorquino que teve o azar de pegar às oito no World Trade Center, a onze de Setembro. Agora, a vítima usava túnica vermelha e laranja e a cabeça rapada e por isso, para grandes males, grandes remédios: abaixo-assinado!

Pode-se fazer política de muitas maneiras: fazendo, não fazendo ou fazendo às vezes. Todas querem dizer qualquer coisa. Fazer às vezes quer dizer que só se faz nas vezes em que vale a pena. E se nessas vezes vale a pena, é porque um valor mais alto se levanta, um valor que justifica a acção. Esse valor, neste caso, é a liberdade ou a vida de um monge budista. Que, de acordo com esta lógica, será superior a outros valores, de mais baixa relevância, como sejam – por exemplo – a liberdade ou a vida de um camponês checheno, que não mereceram ser a excepção que faz com que valha a pena ter uma reflexão política e iniciar um abaixo-assinado.

Evidentemente, todos tendemos a ser mais activos quando a causa da indignação nos toca a nós, ou é geográfica ou afectivamente mais chegada. Não é esse reflexo que aqui se critica. O que se critica é a selectiva mudança de postura: passar de uma posição em que a reflexão sobre os males e os bens da nossa sociedade não merece uma descida dos Himalaias espirituais em que serenamente se procuram as verdades derradeiras para outra em que toca a sacar da esferográfica que estão a dar de “casse-tête” nos monges. De repente, descobrimos aqui uns fulanos que já não têm que suportar passivamente as consequências do seu “karma”. E esta mudança selectiva traz consigo um significado político subliminar mas óbvio: existem seres de primeira e seres de segunda. E daqui poderíamos desenvolver uma longa conversa, que nos levaria muito longe.

Outro comentário que me ocorre é que é de mau tom, já que se está a iniciar uma acção política, começar logo com uma hipocrisia digna da mais baixa politiquice, ao nível do pior que ocorre nas secções concelhias dos partidos do poder. O “slogan” escolhido pela UBP é “Ontem Timor, hoje Myanmar, Tibete, Darfur… – Solidariedade!”. Salta à evidência que Timor e Darfur estão ali como as bolas da anedota do pau de fósforo: só para disfarçar. O que interessa à UBP, e não poderia haver posição mais política do que esta, é o Tibete e Myanmar. Myanmar pelas razões que acima se disseram e o Tibete porque o líder espiritual budista coincide com o líder político tibetano no exílio, na pessoa do Dalai-lama. Dizer que a questão do Tibete é de hoje é esquecer que a invasão pela China foi em 1950 e que o grande granel foi entre essa data e os anos sessenta, em que os tibetanos sofreram tal como os próprios chineses os massacres e loucuras do regime maoísta. Assim sendo, é tão de hoje como a da Palestina, a dos lagos africanos, a de Chipre ou outras que se arrastam há tempo demais.

Quanto a Timor, só faz parte do “slogan” porque faz apelo ao imaginário do maior movimento de solidariedade internacionalista que se verificou em Portugal e o Darfur porque é – ou devia ser – a grande causa humanitária dos dias de hoje. Se a preocupação com o Darfur existia, porquê só agora? A guerra civil sudanesa leva mais de duas décadas e a tragédia humanitária está no auge há anos. Onde tem andado a UBP? Usar as “marcas” Timor e Darfur só para compor o ramalhete é indigno de um movimento que se propõe reflectir sobre o Homem e uma falta de respeito para com aqueles que, naqueles dois sítios esquecidos dos deuses, sofreram a opressão, a guerra e a fome.

Tudo o que disse não tem nada a ver com a admiração que me merecem os birmaneses, monges ou simples gente do povo, que afrontaram o regime nas ruas e o asco que me inspiram os militares da junta. A Birmânia, rica de recursos naturais (gás, petróleo, madeira) tem indicadores de desenvolvimento miseráveis – como um PIB per capita próximo do de Moçambique – que envergonham os seus responsáveis sobretudo em comparação com os de alguns países vizinhos, como a Tailândia ou a Malásia. Por outro lado, e talvez isto explique algumas coisas, possui, relativamente à sua população, o quarto maior exército da Ásia oriental e meridional, só atrás das duas Coreias e de Taiwan.

Infelizmente, e com toda a probabilidade, a junta militar vai continuar. A situação geopolítica é-lhe favorável. A China e a Rússia não permitirão grandes sanções por parte do concerto das nações, os países vizinhos não querem instabilidade e querem o seu gás natural e muitas companhias ocidentais têm lá boas perspectivas de negócio. Se souberem fazer o trabalho sujo com discrição e mantiverem meia dúzia de conversas com a oposição só para parecer que sim, os militares já passaram mais esta crise.



Entretanto, ficaram os presos e os mortos. No passado dia 4, um movimento na “blogosfera” preconizava que todos os blogues do mundo apresentassem um “post” de protesto em solidariedade com as vítimas do regime birmanês. Não soube na altura e vou agora fazê-lo com uma semana de atraso, tempo que não envergonharia nenhuma empresa portuguesa que tivesse que cumprir um prazo. Como homenagem às pessoas que sofrem às mãos de outras pessoas, independentemente de me serem próximas ou distantes.

terça-feira, outubro 09, 2007

A serpente

O Público de hoje relata a insurgência de uma tal Associação Portuguesa de Famílias Numerosas (APFN) contra um folheto antidroga distribuído pelo Instituto da Droga e Toxidependência. O folheto dirige-se a jovens adultos, foi distribuído em discotecas e festivais de “rock” de verão e contém uma linguagem muito explícita como seja alertando para “não partilhar tubos para snifar” ou o que fazer para, no caso de ocorrer ainda assim consumo, diminuir os riscos de vida dos consumidores.

O presidente da APFN, um tal Ribeiro e Castro, utiliza com galhardia o portentoso vocábulo “horrorosa” para atacar a dita campanha. Não sei porquê, cheirou-me a linha de Cascais e a mofo de sacristia e decidi ir ao “site” da APFN saber quem eram estas luminárias, guardiãs da moral pública.

Logo nos estatutos, artigo 2º,1a, ficamos a saber que o fim da associação é o de “defender os legítimos interesses das famílias numerosas, constituídas a partir de uma base eminentemente afectiva e contratual, celebrada entre pessoas de sexo diferente, que de uma forma estável, duradoura e de acordo com os princípios do direito natural prossigam uma comunhão plena de vida”.

Os sublinhados são meus, os eufemismos são deles. Traduzida para português corrente, a finalidade da APFN é “defender os interesses dos casais católicos ortodoxos que pariram uma ranchada de filhos”.

Para mim, que considero o direito de associação algo de essencial numa democracia, encanta-me que os católicos proliferantes se associem para, no respeito da lei, defender os seus magnos interesses. É-me exactamente igual do que se forem os taxistas de praça, os electricistas da região centro ou os tuaregues emigrados em Monfortinho. Chateia-me já um bocado que escondam a sua essência e reais propósitos por trás de fraseados florais e meias palavras.

Só daquele artigo 2º,1a, retiram-se logo uma série de consequências que dão uma medida da extensão do disparate:

- as famílias numerosas que resultem de casais não convencionais (por exemplo, em união de facto) que vão procurar ajuda noutra freguesia: só podem ser sócios casais mesmo casados (estatutos, artigo 5º,2) ou afins;
- logo, os filhos fora destas santas condições de procriação são inferiores aos outros: tempos houve em que, no direito português, estas crianças – denominadas bastardas -tinham “de jure” menos direitos do que as outras, embora ocasionalmente fossem úteis para iniciar novas dinastias;
- o casamento é para a vida toda: não se divorciem, que deixam de merecer apoio;
- existe uma cena chamada “direito natural”: regras que resultam da própria essência da natureza e que por isso o homem no seu juízo crítico não pode alterar. Excelente ponto de partida para o fundamentalismo.

Para três linhas e meia de estatutos, já não é nada mau.

Se continuarmos pelos estatutos fora, encontramos outras pérolas, como: “defender a liberdade fundamental dos pais à educação dos seus filhos e destes escolherem, livremente, para eles, o modelo de ensino que pretendam, no respeito pelos valores essenciais da pessoa humana”. Aparentemente benemeritíssima, mas exactamente a argumentação que se utiliza para justificar a lavagem cerebral nas “madrassas”, o ensino de baboseiras criacionistas nas aulas de biologia no “corn belt” ou o obscurantismo na educação dos filhos posto em prática pelos Amish ou em muitas comunidades ciganas.

Penso que, como na maior parte das coisas da vida, um Estado democrático tem que se preocupar com um equilíbrio entre direitos igualmente honoráveis: o direito dos pais educarem os seus filhos como acharem que é mais proveitoso ao seu desenvolvimento e de transmitirem aos filhos valores que perfilham, com o direito dos filhos a serem minimamente informados para a vida e, no limite, a serem protegidos de pais que apenas se preocupem com eles próprios.

Noutra entrada do “site”, passamos aos princípios da APFN. Estes princípios conseguem ser piores que os fins: tal como no “slogan” gonçalvista, o fascismo espreita a cada esquina.

Vejamos alguns. “A Família é a primeira comunidade natural da sociedade, anterior ao próprio Estado, pelo que este deve estar ao serviço da Família”. Lido de outra forma: “se formos nós a mandar, as nossas regras serão as que se aplicarão a todos, porque são as únicas que são verdadeiras”. Poderei deduzir que quem pisar o risco será queimado vivo no meio da Praça do Comércio? Ou esta: “as famílias constituídas de forma estável e equilibrada são a melhor prevenção e antídoto natural contra a droga, violência, marginalidade e outras disfunções da sociedade”. Lido bem lido, o que isto quer dizer é que a fonte de todo o mal está nas pessoas que praticam uma vida ou uma moral diferentes da correcta (obviamente aquela que a APFN defende). Desta habilidade, a APFN pretende que resulte legitimidade política para proibir comportamentos que ache incorrectos. Ou ainda: “os valores sobre os quais assentam as sociedade – respeito, tolerância, amor, solidariedade, justiça, verdade, liberdade e responsabilidade – aprendem-se, sobretudo, na Família, pelo exemplo e pela educação”. Obviamente a família (com efe minúsculo) é uma estrutura básica de organização social e uma ferramenta poderosa de formação, inclusive em bons valores, se os pais assim se esforçarem. Mas não é nenhuma garantia. E já agora, porque é que a família tem que ser numerosa? Se os filhos forem só dois já não se transmitem sólidas convicções?

Como cereja em cima do bolo, no final dos estatutos temos a lista dos sócios fundadores da APFN, de manifesto interesse sociológico. Parece um texto anterior à reforma ortográfica de 1911: é só hífenes, tê-agás, consoantes dobradas, ípsilones e apóstrofes. Há Palmeirins e Themudos, Lynces que não da Malcata e D’Oreys, todos sob o olhar protector de alguns espíritos santos.

A meu ver, o Estado deve ajudar as famílias numerosas, dentro do apoio que deve genericamente prestar à Família (não confundir este efe maiúsculo com aquele que a APFN inapropriadamente usa) e à Criança. Se os cidadãos se associarem para prosseguir os mesmos fins, poderá fazer sentido que o Estado os apoie, com meios financeiros ou físicos. Mas esta APFN está-se nas tintas para as famílias numerosas, até porque não se destina a todas. É essencialmente um instrumento de promoção de uma ideologia, por acaso até retrógrada, com uma base social bem definida e restrita, que se julga representante de uma verdade incontestável porque divina e se arvora no direito de falar por todos. Por isto, espero que a APFN não receba um tostão dos meus impostos, senão ficaria danado.



O fundamentalismo cristão parece por vezes coisa do passado. Mas anda aí muito menino que lê os Evangelhos como os wahabitas leram o Corão ou os bolcheviques leram Marx: sem critério e sem juízo. O fundamentalismo cristão está em crescendo no mundo e só não controla a maior potência mundial porque nos Estados Unidos há separação de poderes. E a História demonstra que isto é deveras preocupante. Qualquer livro de História. A de Portugal serve.

A APFN representa em Portugal uma face enganosa deste fundamentalismo cristão. Admito que muitos dos sócios – perdoai-lhes Senhor – nem saibam a quantas andam e achem só aquilo muita giro. Mas grandes calamidades começaram no passado com grupinhos e grupelhos tão anódinos quanto este. Por acaso, eu, que sou pai e casado pela Igreja de papel passado, se me aplicasse um bocadinho até poderia em menos de um ano candidatar-me a sócio da APFN. Mas Deus me livre de tal cãzoada.