domingo, outubro 14, 2007

A longa e ventosa estrada

Em resposta a desafio de blogue amigo, fiquei de dissertar sobre os Beatles. Tarefa difícil para uma banda ou um fenómeno cultural ou social carequita de ser analisado, dissecado, venerado de todas as maneiras e feitios. Neste assunto é que não há mesmo nada de novo debaixo do sol.

Poderia ir gamar ideias à mais bonita homenagem feita aos Quatro, duas páginas de banda desenhada pelo traço de génio de Marcel Gotlib, de 1972, intituladas “ils étaient quatre”. Gotlib conta-nos que fez umas investigações na sua discoteca para responder à pergunta idiota que na altura se fazia: será o fim dos Beatles? Que concluiu ele? Que o sol de “Good day sunshine” continua a brilhar… Que o Bungalow Bill continua a caçar o tigre, com o elefante e com a mãe… Que o doutor Robert continua a curar toda a gente e que podemos continuar a confiar nele… Que o Rocky Racoon continua a bater-se em duelo com o Danny Boy para recuperar a sua mulher Magill… Que a morsa continua a declarar que vende ovos… Que o campo de morangos continua a não estar maduro no “Strawberry fields forever”… Que a rapariga dos olhos de caleidoscópio continua no torniquete em “Lucy in the sky”… Que em Penny Lane as crianças continuam a rir-se do banqueiro e do seu carro, sob o céu azul dos subúrbios… E assim sucessivamente…

Gotlib concluiu que não havia azar. Os Beatles continuam a ser os Beatles. As duzentas prendas que eles nos deixaram no sapatinho continuam a trabalhar que nem relógios suíços. Eu próprio confirmei este resultado, repetindo a experiência trinta e cinco anos depois e verificando que também funciona em formato digital. A Eleanor Rigby binária continua a apanhar os grãos de arroz na igreja deserta onde o padre Mac Kenzie escreve o seu sermão, passado que está vai para meio século.



Demonstrada a existência, pode-se também fazer prova da unicidade. Os Beatles são efectivamente únicos. Deixa-se a demonstração a cargo do leitor. Para o ajudar, alguns dados científicos sobre os Beatles:

Facto 1: Todas as músicas dos Beatles estão recobertas de cera, um lubrificante natural do canal auditivo. Por isso entram tão bem no ouvido.

Facto 2: Muitas canções dos Beatles libertam um gás volátil com o difícil nome de sin-propanetial-S-óxido, o qual em contacto com a água da mucosa dos olhos produz uma solução diluída de ácido sulfúrico que faz chorar. Tal ocorre, entre outras, com “In my life”, “Here, there and everywhere”, “She’s leaving home”, “The fool on the hill”, “You never give me your money” ou “The long and winding road”. Curiosidade: a cebola liberta o mesmo gás.

Facto 3: Muitas músicas dos Beatles induzem a produção pelo corpo humano de dopaminas (C8H11NO2) e oxitocinas (C43H66N12O12S2). As primeiras aumentam com a paixão e produzem uma sensação de prazer e as segundas estão relacionadas com as actividades afectivas. O ouvinte corre pois o risco de ficar apaixonado. São exemplos “Michelle”, “Yesterday”, “Norwegian wood”, “And I love her”, “Something” ou “I’ve just seen the face”.

Facto 4: A obra dos Beatles sofreu, a partir de meados da década de sessenta, uma tal aceleração criadora que se começaram a verificar efeitos relativistas. Tal como nos filmes de ficção científica em que o herói viaja à velocidade da luz e regressa à Terra no século XXV mas para ele só passaram três meses, muitas músicas dos Beatles chegam aos nossos dias frescas que nem alfaces, como se tivessem sido compostas por putos de Billabong e iPod. Veja-se “Taxman”, “Dr. Robert”, “Ticket to ride”, “Sexy Sadie”, “Get back” ou “Revolution 1”.

Facto 5: Pelas mesmíssimas razões que encontramos na base do facto nº 4, a música dos Beatles apresenta frequentemente um comportamento não-causal, aparecendo adiantada em relação ao seu tempo. Tal ocorre em “A day in a life”, “Fixing a hole”, “I’m only sleeping”, “Magical mystery tour” e em praticamente todo o álbum branco.

Facto 6: Em consequência do facto 5, o trabalho dos Beatles tem fortes propriedades magnéticas. Atraiu muita gente, que copiou descaradamente ou foi pelo menos fortemente influenciada, desde os Stones na época a muita da “pop” britânica de hoje.


Populares e geniais, generalistas e vanguardistas, mito e substância, os Beatles mudaram hábitos, mentalidades e gostos, fazendo música que fazia aquilo que a música é suposta fazer: ser importante na vida das pessoas. Foi importante na minha? Algumas vezes. Posso contar aqui uma história. Igual ou parecida à de milhões de outras histórias de outros colegas de planeta.

No Agosto dos meus dezoito anos, viajei de “inter-rail” e tive um daqueles amores de férias que são infinitos enquanto duram mas que só duram até à partida do próximo comboio. No dia da separação, estando eu já desfeito de saudades, com a obrigatória telha, o mundo desabado sob os meus pés, entrei para fugir a um aguaceiro num McDonalds em Graz, na Áustria. Aí, uma TV a preto e branco passava um desenho animado dos Beatles: “I’ll follow the sun”. E dizia:

One day you'll look and see I've gone,

For tomorrow may rain so I'll follow the sun.
Some day you'll know I was the one,
But tomorrow may rain so I'll follow the sun.

Olhei pela janela e já não chovia. Segui o sol. Até hoje…


Os Beatles foram possivelmente o grupo que mais marcou a minha vida. E mesmo hoje em dia, muitas vezes sou trazido de volta à longa e ventosa estrada que me leva até à sua (deles) porta.

1 comentário:

NunoF disse...

Pujante post, meu caro amigo Mata. Pujantíssimo.

Decidi, entretanto, fazer do músicas de arrepiar uma espécie de rubrica mais ou menos recorrente sobre outras músicas que me marcaram, ou apenas me fazem arrepiar...

Sim, e provavelmente vou falar novamente nos Beatles :-) são incontornáveis.