O Público de hoje relata a insurgência de uma tal Associação Portuguesa de Famílias Numerosas (APFN) contra um folheto antidroga distribuído pelo Instituto da Droga e Toxidependência. O folheto dirige-se a jovens adultos, foi distribuído em discotecas e festivais de “rock” de verão e contém uma linguagem muito explícita como seja alertando para “não partilhar tubos para snifar” ou o que fazer para, no caso de ocorrer ainda assim consumo, diminuir os riscos de vida dos consumidores.
O presidente da APFN, um tal Ribeiro e Castro, utiliza com galhardia o portentoso vocábulo “horrorosa” para atacar a dita campanha. Não sei porquê, cheirou-me a linha de Cascais e a mofo de sacristia e decidi ir ao “site” da APFN saber quem eram estas luminárias, guardiãs da moral pública.
Logo nos estatutos, artigo 2º,1a, ficamos a saber que o fim da associação é o de “defender os legítimos interesses das famílias numerosas, constituídas a partir de uma base eminentemente afectiva e contratual, celebrada entre pessoas de sexo diferente, que de uma forma estável, duradoura e de acordo com os princípios do direito natural prossigam uma comunhão plena de vida”.
Os sublinhados são meus, os eufemismos são deles. Traduzida para português corrente, a finalidade da APFN é “defender os interesses dos casais católicos ortodoxos que pariram uma ranchada de filhos”.
Para mim, que considero o direito de associação algo de essencial numa democracia, encanta-me que os católicos proliferantes se associem para, no respeito da lei, defender os seus magnos interesses. É-me exactamente igual do que se forem os taxistas de praça, os electricistas da região centro ou os tuaregues emigrados em Monfortinho. Chateia-me já um bocado que escondam a sua essência e reais propósitos por trás de fraseados florais e meias palavras.
Só daquele artigo 2º,1a, retiram-se logo uma série de consequências que dão uma medida da extensão do disparate:
- as famílias numerosas que resultem de casais não convencionais (por exemplo, em união de facto) que vão procurar ajuda noutra freguesia: só podem ser sócios casais mesmo casados (estatutos, artigo 5º,2) ou afins;
- logo, os filhos fora destas santas condições de procriação são inferiores aos outros: tempos houve em que, no direito português, estas crianças – denominadas bastardas -tinham “de jure” menos direitos do que as outras, embora ocasionalmente fossem úteis para iniciar novas dinastias;
- o casamento é para a vida toda: não se divorciem, que deixam de merecer apoio;
- existe uma cena chamada “direito natural”: regras que resultam da própria essência da natureza e que por isso o homem no seu juízo crítico não pode alterar. Excelente ponto de partida para o fundamentalismo.
Para três linhas e meia de estatutos, já não é nada mau.
Se continuarmos pelos estatutos fora, encontramos outras pérolas, como: “defender a liberdade fundamental dos pais à educação dos seus filhos e destes escolherem, livremente, para eles, o modelo de ensino que pretendam, no respeito pelos valores essenciais da pessoa humana”. Aparentemente benemeritíssima, mas exactamente a argumentação que se utiliza para justificar a lavagem cerebral nas “madrassas”, o ensino de baboseiras criacionistas nas aulas de biologia no “corn belt” ou o obscurantismo na educação dos filhos posto em prática pelos Amish ou em muitas comunidades ciganas.
Penso que, como na maior parte das coisas da vida, um Estado democrático tem que se preocupar com um equilíbrio entre direitos igualmente honoráveis: o direito dos pais educarem os seus filhos como acharem que é mais proveitoso ao seu desenvolvimento e de transmitirem aos filhos valores que perfilham, com o direito dos filhos a serem minimamente informados para a vida e, no limite, a serem protegidos de pais que apenas se preocupem com eles próprios.
Noutra entrada do “site”, passamos aos princípios da APFN. Estes princípios conseguem ser piores que os fins: tal como no “slogan” gonçalvista, o fascismo espreita a cada esquina.
Vejamos alguns. “A Família é a primeira comunidade natural da sociedade, anterior ao próprio Estado, pelo que este deve estar ao serviço da Família”. Lido de outra forma: “se formos nós a mandar, as nossas regras serão as que se aplicarão a todos, porque são as únicas que são verdadeiras”. Poderei deduzir que quem pisar o risco será queimado vivo no meio da Praça do Comércio? Ou esta: “as famílias constituídas de forma estável e equilibrada são a melhor prevenção e antídoto natural contra a droga, violência, marginalidade e outras disfunções da sociedade”. Lido bem lido, o que isto quer dizer é que a fonte de todo o mal está nas pessoas que praticam uma vida ou uma moral diferentes da correcta (obviamente aquela que a APFN defende). Desta habilidade, a APFN pretende que resulte legitimidade política para proibir comportamentos que ache incorrectos. Ou ainda: “os valores sobre os quais assentam as sociedade – respeito, tolerância, amor, solidariedade, justiça, verdade, liberdade e responsabilidade – aprendem-se, sobretudo, na Família, pelo exemplo e pela educação”. Obviamente a família (com efe minúsculo) é uma estrutura básica de organização social e uma ferramenta poderosa de formação, inclusive em bons valores, se os pais assim se esforçarem. Mas não é nenhuma garantia. E já agora, porque é que a família tem que ser numerosa? Se os filhos forem só dois já não se transmitem sólidas convicções?
Como cereja em cima do bolo, no final dos estatutos temos a lista dos sócios fundadores da APFN, de manifesto interesse sociológico. Parece um texto anterior à reforma ortográfica de 1911: é só hífenes, tê-agás, consoantes dobradas, ípsilones e apóstrofes. Há Palmeirins e Themudos, Lynces que não da Malcata e D’Oreys, todos sob o olhar protector de alguns espíritos santos.
A meu ver, o Estado deve ajudar as famílias numerosas, dentro do apoio que deve genericamente prestar à Família (não confundir este efe maiúsculo com aquele que a APFN inapropriadamente usa) e à Criança. Se os cidadãos se associarem para prosseguir os mesmos fins, poderá fazer sentido que o Estado os apoie, com meios financeiros ou físicos. Mas esta APFN está-se nas tintas para as famílias numerosas, até porque não se destina a todas. É essencialmente um instrumento de promoção de uma ideologia, por acaso até retrógrada, com uma base social bem definida e restrita, que se julga representante de uma verdade incontestável porque divina e se arvora no direito de falar por todos. Por isto, espero que a APFN não receba um tostão dos meus impostos, senão ficaria danado.
O fundamentalismo cristão parece por vezes coisa do passado. Mas anda aí muito menino que lê os Evangelhos como os wahabitas leram o Corão ou os bolcheviques leram Marx: sem critério e sem juízo. O fundamentalismo cristão está em crescendo no mundo e só não controla a maior potência mundial porque nos Estados Unidos há separação de poderes. E a História demonstra que isto é deveras preocupante. Qualquer livro de História. A de Portugal serve.
A APFN representa em Portugal uma face enganosa deste fundamentalismo cristão. Admito que muitos dos sócios – perdoai-lhes Senhor – nem saibam a quantas andam e achem só aquilo muita giro. Mas grandes calamidades começaram no passado com grupinhos e grupelhos tão anódinos quanto este. Por acaso, eu, que sou pai e casado pela Igreja de papel passado, se me aplicasse um bocadinho até poderia em menos de um ano candidatar-me a sócio da APFN. Mas Deus me livre de tal cãzoada.
3 comentários:
Eu acho que a Sofiazita ficava contentinha que te pudesses abilitar a sócio dessa coisa... sobretudo se fossem tentando até conseguir a menina... ;)
F amília
F é
F utebol
(adaptação livre dos éfes do tempo do Estado Novo)
Cá pra mim, tanto a letra (F) como o número de vezes que aparece (3) é uma mensagem subliminal a que o mataspeaker está sempre muito atento.
10:42 PM
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