sexta-feira, outubro 12, 2007

Quando a política apetece…

Nos últimos anos, alguns amigos de longa data, apanhados naquela curva da vida em que se olha para trás e se percebe que o caminho já vai a meio, têm abraçado a causa budista. Um desses, leitor ocasional deste blogue, costuma zurzir-me pela pouca introspecção e espiritualidade dos meus textos, muito dirigidos, segundo ele, para questões pouco nobres de sociedade ou de política. A porca da política…

Qual não foi pois o meu espanto quando ao entrar ontem no “website” da União Budista Portuguesa (UBP) me deparo com uma proposta para subscrever abaixo-assinados para pressionar o governo da Birmânia a respeitar os direitos humanos. Não me pude impedir de sorrir. Afinal, a política é a continuação da espiritualidade, só que por outros meios.

Obviamente, este súbito despertar activista não surge por acaso. Ocorre no momento em que a junta militar que manda naquele país esmagou à pancada um levantamento popular no qual o clero budista teve um papel extremamente relevante. De repente, a vítima ficou mais próxima: já não é o palestiniano que implora a passagem de uma ambulância num “check point” ou a mulher nicaraguense que morre de gravidez ectópica por proibição do aborto clínico ou o trabalhador nova-iorquino que teve o azar de pegar às oito no World Trade Center, a onze de Setembro. Agora, a vítima usava túnica vermelha e laranja e a cabeça rapada e por isso, para grandes males, grandes remédios: abaixo-assinado!

Pode-se fazer política de muitas maneiras: fazendo, não fazendo ou fazendo às vezes. Todas querem dizer qualquer coisa. Fazer às vezes quer dizer que só se faz nas vezes em que vale a pena. E se nessas vezes vale a pena, é porque um valor mais alto se levanta, um valor que justifica a acção. Esse valor, neste caso, é a liberdade ou a vida de um monge budista. Que, de acordo com esta lógica, será superior a outros valores, de mais baixa relevância, como sejam – por exemplo – a liberdade ou a vida de um camponês checheno, que não mereceram ser a excepção que faz com que valha a pena ter uma reflexão política e iniciar um abaixo-assinado.

Evidentemente, todos tendemos a ser mais activos quando a causa da indignação nos toca a nós, ou é geográfica ou afectivamente mais chegada. Não é esse reflexo que aqui se critica. O que se critica é a selectiva mudança de postura: passar de uma posição em que a reflexão sobre os males e os bens da nossa sociedade não merece uma descida dos Himalaias espirituais em que serenamente se procuram as verdades derradeiras para outra em que toca a sacar da esferográfica que estão a dar de “casse-tête” nos monges. De repente, descobrimos aqui uns fulanos que já não têm que suportar passivamente as consequências do seu “karma”. E esta mudança selectiva traz consigo um significado político subliminar mas óbvio: existem seres de primeira e seres de segunda. E daqui poderíamos desenvolver uma longa conversa, que nos levaria muito longe.

Outro comentário que me ocorre é que é de mau tom, já que se está a iniciar uma acção política, começar logo com uma hipocrisia digna da mais baixa politiquice, ao nível do pior que ocorre nas secções concelhias dos partidos do poder. O “slogan” escolhido pela UBP é “Ontem Timor, hoje Myanmar, Tibete, Darfur… – Solidariedade!”. Salta à evidência que Timor e Darfur estão ali como as bolas da anedota do pau de fósforo: só para disfarçar. O que interessa à UBP, e não poderia haver posição mais política do que esta, é o Tibete e Myanmar. Myanmar pelas razões que acima se disseram e o Tibete porque o líder espiritual budista coincide com o líder político tibetano no exílio, na pessoa do Dalai-lama. Dizer que a questão do Tibete é de hoje é esquecer que a invasão pela China foi em 1950 e que o grande granel foi entre essa data e os anos sessenta, em que os tibetanos sofreram tal como os próprios chineses os massacres e loucuras do regime maoísta. Assim sendo, é tão de hoje como a da Palestina, a dos lagos africanos, a de Chipre ou outras que se arrastam há tempo demais.

Quanto a Timor, só faz parte do “slogan” porque faz apelo ao imaginário do maior movimento de solidariedade internacionalista que se verificou em Portugal e o Darfur porque é – ou devia ser – a grande causa humanitária dos dias de hoje. Se a preocupação com o Darfur existia, porquê só agora? A guerra civil sudanesa leva mais de duas décadas e a tragédia humanitária está no auge há anos. Onde tem andado a UBP? Usar as “marcas” Timor e Darfur só para compor o ramalhete é indigno de um movimento que se propõe reflectir sobre o Homem e uma falta de respeito para com aqueles que, naqueles dois sítios esquecidos dos deuses, sofreram a opressão, a guerra e a fome.

Tudo o que disse não tem nada a ver com a admiração que me merecem os birmaneses, monges ou simples gente do povo, que afrontaram o regime nas ruas e o asco que me inspiram os militares da junta. A Birmânia, rica de recursos naturais (gás, petróleo, madeira) tem indicadores de desenvolvimento miseráveis – como um PIB per capita próximo do de Moçambique – que envergonham os seus responsáveis sobretudo em comparação com os de alguns países vizinhos, como a Tailândia ou a Malásia. Por outro lado, e talvez isto explique algumas coisas, possui, relativamente à sua população, o quarto maior exército da Ásia oriental e meridional, só atrás das duas Coreias e de Taiwan.

Infelizmente, e com toda a probabilidade, a junta militar vai continuar. A situação geopolítica é-lhe favorável. A China e a Rússia não permitirão grandes sanções por parte do concerto das nações, os países vizinhos não querem instabilidade e querem o seu gás natural e muitas companhias ocidentais têm lá boas perspectivas de negócio. Se souberem fazer o trabalho sujo com discrição e mantiverem meia dúzia de conversas com a oposição só para parecer que sim, os militares já passaram mais esta crise.



Entretanto, ficaram os presos e os mortos. No passado dia 4, um movimento na “blogosfera” preconizava que todos os blogues do mundo apresentassem um “post” de protesto em solidariedade com as vítimas do regime birmanês. Não soube na altura e vou agora fazê-lo com uma semana de atraso, tempo que não envergonharia nenhuma empresa portuguesa que tivesse que cumprir um prazo. Como homenagem às pessoas que sofrem às mãos de outras pessoas, independentemente de me serem próximas ou distantes.

3 comentários:

Cristina Rodo disse...

LOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOL
E que foste tu fazer ao site da UBP for a start?
Dale Carlitos que ele merece... é tipo seis de espadas.
PS: e não estou de acordo que este blog não seja "útil"... LOL

NunoF disse...

"Ceifa o gajo pá, ceifa o gajo!"

Unknown disse...

Querido Mata,

Tens toda a razão: os não Budas tendem a ser parciais, i.e. defender aqueles com quem sentem afinidades.

Abraços e obrigado pelas tuas ideias e constatações de incoerências.

Bem hajas,

Paulo