domingo, setembro 30, 2007

Sensibilidade e bom senso

Há dias em que leio o jornal e concluo que, ou sou eu que sou estúpido, com um entendimento débil das realidades profundas desta vida, ou serão outros que não eu.

O caso conta-se em poucas linhas: uma mãe entregou a filha de poucos meses para adopção a um casal sem filhos; este criou-a como se a criança fosse sua, aparentemente com todos os desvelos; o pai, que inicialmente nem quisera saber da filha, apareceu posteriormente a pedir a guarda da criança; o processo de adopção fora irregular; os tribunais sentenciaram – e reconfirmaram agora – que aquela criança, já com cinco anos, deve mudar para uma casa que desconhece, com pais que não sabe quem são e que não reconhece como pais, vide com um nome que não é o dela. Acresce que existem dúvidas algo fundadas sobre a capacidade do pai dito biológico garantir as responsabilidades da paternidade.

Provavelmente por eu ser estúpido, consigo imaginar o terror que viverá aquela criança, no dia em que for arrancada à sua vida para ser enterrada noutra, por ordem do douto juiz, por muitos peluches que tenha à chegada ao novo quarto.

Tenho lido e ouvido advogados e juízes a justificar em abstracto a bondade da decisão. Que não pode ser permitido que, no limite, A rapte o filho de B, o eduque como seu, e que B não possa recuperar seu filho e A não seja punido. Entendo, mas parece-me estar longe de ser o que aconteceu neste caso.

Tenho também lido e ouvido pediatras e psicólogos indignando-se com o caso, certos dos traumas que esta criança vai sofrer. Concordo, e julgo que nem será preciso um canudo em ciências médicas para chegar a essa conclusão.

Ninguém está acima da Lei, nem sequer as leis. Muito menos os juízes. Na minha estúpida perspectiva, a Lei deveria proteger direitos fundamentais, entre os quais o direito à vida e à personalidade. A vida daquela criança começou de uma forma estranha e irregular à luz das leis do burgo, mas tal não dá legitimidade ao Estado para determinar o rasgo daquela personalidade, como se de um documento caduco se tratasse. Admito que haja complexidades, ou culpas a expiar, mas quando a coisa envolve direitos de uma criança devem ser usadas pinças e não o martelo judicial.



A última decisão do tribunal fala inclusive de um período de transição, com detalhes escabrosos dignos do procedimento de arranque de uma máquina, dividindo a miúda no tempo e no espaço entre pais antigos e novos, como se de uma decisão salomónica se tratasse. Só que a história do Livro dos Reis não fala sobre os rigores da lei, antes relata o bom senso de Salomão. E bom senso não me parece que abunde no julgamento deste caso.

Eu, que não tenho as luzes que iluminam os meritíssimos, vejo com vantagem a reformulação do curso superior de magistratura, de modo a que o seu currículo se componha das seguintes cadeiras: Introdução ao bom senso; Teoria do bom senso I e II; Práticas de bom senso; Bom senso aplicado ao direito; Noções básicas de sensibilidade; Estágio final de bom senso; Seminário de modéstia. Para corpo docente, arranjem as primeiras pessoas que passarem na rua. Pior não pode ser, de certeza absoluta.

Um sistema judicial independente e respeitado é um dos pilares de um regime democrático. Para que funcione, tem que ter os meios que infelizmente não tem, situação que faz com que de facto a justiça em Portugal seja hoje um obstáculo ao desenvolvimento e um peso no erário. Para que seja respeitado, acima da beca e dos estrados altos, necessita de juízes que se preocupem mais com a defesa dos Direitos cuja garantia faz da Democracia o regime potencialmente diferente, do que com a letra e a pretensa consistência interna do cafarnaum de leis que, por preguiça, herdámos de sucessivas camadas de legisladores.

Até lá, a democracia será apenas mais uma conversa de café.

2 comentários:

NunoF disse...

Não funciona, nunca funcionou nem vai funcionar.

Nem é preciso um caso tão mediático quanto este para se constatar isso.

Quem tem dinheiro compra mais vida e mais justiça, quem não tem só lhe resta esperar nunca ser associado a algum lapso jurídico de algum inspector mais aborrecido, ou pior, de um advogado mais criativo ...

Unknown disse...

O ilustríssimo Sr. Dr. Juiz António Martins, com a pomposa candidatura a Presidente da Direcção da Associação dos Juizes Portugueses (LOL), participou no debate "Prós e Contras" de segunda-feira passada, justamente prenunciando-se sobre este caso.

Curiosamente, viria a encontrá-lo no dia seguinte, no enterro da avó dos meus irmãos. Não consegui tirar os olhos daquele personagem de olhar mesquinho e austero que, ainda no dia anterior, alegava que podia estar "do lado da lei" mas que também tinha filhos e portanto um coração.

Esta deve ter sido uma dedução lógica do senhor, à semelhança de "Tens aquário? Então és paneleiro!", pois posso vos garantir que tentei vislumbrar um laivo de sentimentos, uma prova que fosse de humanização, mas aquele senhor fazia o homem de lata, do Feiticeiro de Oz, parecer uma verdadeira Madre Teresa de Calcutá!

Que a ajustiça Portuguesa está um caos, é inquestionável, mas principalmente está nas mãos de seres mecanizados que se regem por factos, contra os quais parecem não haver argumentos, incapazes de "adaptar" a lei em prol de uma decisão moral.

Mas arrastando-se este processo desde de que a criança tem menos de um ano (e não desde que tem 5!), parece-me "above all", que nenhuma das partes envolvidas, pais "afectivos", pai biológico ou tribunal, realmente se preocupou mais com a felicidade dela do que com a sua própria....

Sugiro 20 santolas e um retiro no Meco para todos eles!