Durante o período de férias de Verão, uma criança de onze anos foi assassinada em Liverpool com um tiro no pescoço quando regressava a casa de um treino de futebol, guiando a sua bicicleta. Possivelmente foi morta por engano por miúdos pouco mais velhos do que ela, pertencentes a gangues locais. Tenho um filho com onze anos, que também treina futebol, e portanto senti esta dor de uma forma muito minha.
Sobre este crime, a imprensa inglesa deu enfoque, e a portuguesa reproduziu, a dois factos: ao de ser a enésima vítima menor de violência de rua em Inglaterra, este ano, e ao de o rapaz morto morar em Croxeth, o bairro de onde é originário o jogador Wayne Rooney.
Ao enfatizar este último aspecto, a imprensa acaba por estar a escrever nas entrelinhas. Sabe-se ser este um dos mais perigosos (ou, como se diz hoje em dia, “problemáticos”) bairros de Liverpool. Ao referir Croxeth como o fizeram, os jornais estão a adiantar – admito que inconscientemente – um elemento de algum modo explicativo: embora certamente lamentável, parecerá ao leitor mais compreensível que se apanhe com um tiro em Croxeth do que num bairro pipi de Liverpool, exactamente pelo mesmo mecanismo que nos parece uma fatalidade que se pise uma mina em Angola e veríamos com escândalo que tal acontecesse na Avenida da Liberdade.
O mundo não é perfeito, mas que o Reino Unido, uma das pátrias da liberdade ocidental, se resigne a que uma criança de Croxeth tenha mais probabilidade de morrer com um tiro do que outra que more no centro de Liverpool ou de Londres, parece-me imperfeição excessiva e desnecessária. Convém que, tal como os restantes mamíferos superiores, e de modo a merecer o adjectivo, nos organizemos para proteger as nossas crias, morem elas em Croxeth ou em Mayfair.
Isto implica um tipo de organização, começada há milhares de anos na Suméria, em que uma entidade representante dos interesses colectivos recolhe fundos – impostos – para satisfazer esses interesses, sejam eles segurança, água potável ou a redução dos riscos desta vida. Essa entidade, com o nome hoje pejorativo de “Estado”, foi-se refinando ao longo da História, ganhando, nalguns casos de sucesso, em eficiência, em representatividade e em equilíbrio na sua relação com cada indivíduo.
Para satisfazer níveis de protecção que garantam igualdade de oportunidades a todas as crianças (incluindo as de Croxeth), o tal Estado precisa de meios policiais, administrativos e judiciais adequados às exigências de cada momento. Precisa também de promover meios económicos e educacionais que reduzam desigualdades e criem perspectivas. Não tenho a certeza que os Estados escanzelados, financeiramente asfixiados e sem capacidade crítica sobre as malandrices que lhes fazem outros mais espertos do que eles, que nos propõe a “conventional wisdom” actual da política económica e dos “pivots” de têvê, tenham as ferramentas necessárias para cumprir a missão referida.
Ao fim e ao cabo, todos os livros de teoria política podem ser arrumados em apenas duas estantes: a que diz “Lei do mais forte” e a que diz “Primado da Lei”.
Convém pensar um bocadinho de que prateleira queremos tirar o nosso manual de boas práticas, para depois não nos queixarmos.
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