sábado, maio 19, 2007

Presuntos implicados

Contrariamente ao que arenga a sabedoria convencional, um democrata para o ser tem que ser um fundamentalista.

O conceito de fundamentalismo nasceu associado a movimentos de carácter religioso que assumiam o carácter infalível e regulador de textos sagrados ou de certos dogmas, mas acabou por se estender a qualquer grupo que julgue que existem preceitos que se devem aplicar, invariavelmente, a todas as pessoas e em todas as situações. Exactamente neste sentido, o democrata é obrigatoriamente fundamentalista. Porque para ele existirão valores que serão sempre correctos, quer o sirvam a ele, quer ao seu maior inimigo; valores que não poderão nunca ser beliscados; valores para os quais não há “ses” nem “talvez”.

A lista desses valores ainda é grandota. Inclui concepções sobre o poder (que deve ser submetido a regras, representativo, consentido, repartido, transparente e equilibrado por contra-poderes), sobre as obrigações de comportamento individual e colectivo (para as quais é central o conceito de liberdade individual e que passam por normas adequadas ao funcionamento simultâneo de seis biliões de liberdades individuais) ou, ainda, sobre a dignidade humana (através da protecção da vida ou da igualdade diante da sociedade e das leis).

Poderemos com alguma justiça definir como democracias apenas as sociedades em que uma parte substancial da população tenha assimilado, como componente da sua cultura, estes conceitos. Em que os políticos, os juízes, os enfermeiros e os limpa-chaminés os achem óbvios. Sociedades como Portugal, em que existam instituições e leis democráticas, mas em que as pessoas não sintam esses valores como seus, são meramente regimes democráticos, não democracias. E tais sociedades, não se alicerçando sobre um fixe – um “bedrock”, como dizem os ingleses – de valores imperturbáveis, abanam com frequência, por vezes perante sismozitos insignificantes.

Um dos valores em questão é a presunção de inocência. Um daqueles que se percebe logo: ninguém gostaria de ser acusado em vão de gamar uma carteira, ou de benfiquismo ou de qualquer outra coisa assim grave. Uma falsa acusação fere o sentido de justiça e pode estragar a vida a um tipo. Para evitar tal coisa, o progresso da civilização criou alguns princípios básicos: todo o acusado está inocente até ser condenado; tal condenação carece de prova; o ónus da prova fica com quem acusa; e a prova deve estabelecer a culpa para além de qualquer dúvida razoável. No fundo, quem quiser viver numa sociedade em que não se ande vestido de peles, com mocas numa mão e mulher arrastada pelos cabelos na outra, tem que aceitar que mais vale deixar um crime sem castigo de que correr o risco de engaiolar o gajo errado.

Deixa-nos indignados que um crime hediondo fique por punir? Deixa, mas eu ficaria muito mais ofendido se preso por algo que não fiz. A vida é assim: imperfeita. Ocorrem tremores de terra de grau oito, morrem crianças de leucemia e não se encontram culpados de sabujices atrozes. Quem quiser estar em jogo sabe que são estas as regras e os riscos. Mas a vida, além de imperfeita, é preciosa e irrepetível. Por isso, há que usar de toda a prudência antes de estragar a de alguém por engano.



Há dias, reportando as investigações ao rapto da pequena inglesa no Algarve, a RTP deu – financiada pelos meus impostos! - um festival de alarvidade noticiosa à volta de um fulano que foi interrogado pela polícia. Filmaram à porta de sua casa e deram o nome da vivenda, de modo a que toda a gente pudesse saber quem ele era. Uma senhora gaja descabelada, identificada abusivamente como “jornalista”, gritou ao microfone banalidades sem conteúdo como se fossem notícias. Revelou, com ar de inconfidência fundada, que pessoas da vizinhança lhe teriam dito que o indivíduo apresentava um comportamento “anómalo”! Como anómalo? Matava pessoas com uma serra eléctrica? Lia mais de dez livros por ano? Votava na Carmelinda Pereira para as presidenciais? Ouvia os “Irmãos Catita”? Almoçava túbaros? Não usava fato-de-banho na praia? Em Portugal, todos estes comportamentos são fora da norma, mas só o da serra eléctrica constitui crime, penso eu de que! Fechei o televisor enojado, interrompendo a idiota do micro a meio de mais uma cretinice, deixando-a lá longe no seu labor sujo de crucificar um homem na praça pública.

Não sei se o homem tem ou não culpa no cartório. Tal é totalmente irrelevante, uma vez que não me cabe, nem a mim nem à gajola da RTP, decidir sobre esse assunto. A mim e à pindérica cabe-nos pensar que, até prova em contrário, aquele senhor é tão respeitável como o nosso paizinho e tomar as precauções inerentes. O facto de o crime em causa ser dos mais hediondos que possa haver, dos que mais fere a nossa humanidade e o nosso sentir interior de pessoas e pais, não diminui a necessidade de cautela, antes reforça-a. Um crime gravíssimo e moralmente repelente pode ser o teste mais drástico à solidez dos nossos princípios. Se neste momento difícil a nossa convicção na presunção da inocência fraquejar, bem nos podemos juntar ao magote disponível para babar ódio instigado pelos pelourinhos televisivos e pelas Manuela Moura Guedes deste triste mundo, versão moderna das turbas grosseiras do passado que aplaudiam no rossio da vila os corpos enforcados dependurados do cadafalso.

Se não soubermos distinguir entre um “presunto implicado”, como dizem os espanhóis, e um culpado, rapidamente o transformaremos em simples “presunto”, no sentido menos simpático que tal palavra tem no “bas-fond” da favela carioca.

2 comentários:

Cristina Rodo disse...

Ainda não li, voltarei cá mais tarde que já estou a ter reclamações vindas da sala, mas... isto é que é "um pequeno" post?
Irra!

CMata disse...

Os pequenos "posts" terão todos como título "Cenas Ridículas". Este ainda não faz parte.

Ass: el cagón en persona