quarta-feira, maio 02, 2007

Para variar, porrada nos franceses!

Para satisfazer alguns comentários que, não sem uma certa razão, me acusaram de estar a branquear comportamentos mais reles que nalguns aspectos desta vida os franceses possam ostentar, decidi para me redimir recuperar um texto meu antigo, a esse mesmo propósito, intitulado “Paris”:


Em 1852, iniciou-se um notável esforço de renovação urbana que iria transformar a Paris suja e apinhada dos Luíses numa capital ordenada e arejada, segundo um padrão geométrico de avenidas e bulevares. Com a participação dos melhores engenheiros e arquitectos da época, surgiu uma grandiosa cidade, com sistema de água e esgotos renovados, belos parques, novos subúrbios. Paris tornou-se magnífica.

O homem por trás da obra foi Georges-Eugène Haussmann, advogado, funcionário público e barão, que durante 17 anos ocupou a prefeitura do Sena para glória do seu mediano soberano, Napoleão III.

Não podia o pobre Georges-Eugène adivinhar que, tendo a história executado um daqueles ganchos apertados do espaço-tempo que a Teoria do Caos chama “catástrofe”, a sua cidade se iria povoar com um número absolutamente desmoralizante de parisienses. E foi aqui que as coisas começaram a correr menos bem. Passo a explicar:


1) A tromba

Se existe uma instituição genuinamente parisiense, é a tromba. O paquidérmico apêndice é ostentado um pouco por toda a parte, na rua, nos "bistrots", nas portarias dos museus, nos transportes públicos ou onde quer que o parisiense tenha que sofrer a experiência medíocre de partilhar o seu oxigénio com terceiros.

Com trombas tão bojudas, tão peludas, tão a rojar pelo chão, punha-se um problema de aparências para resolver. Para dar um ar minimamente civilizado, vagamente compatível com o esplendor neo-clássico dos monumentos novecentistas e com o "art nouveau" das bocas de metro, o parisiense engendrou dois astuciosos ardis: o "monsieur" e o "pardon".

Sempre que se aborda um parisiense para obter uma informação, desliza o "monsieur" de sob a tromba, com o único propósito de arvorar um ar bem-educado. A partir daí, se existir a mínima hipótese de a resposta ser negativa, sê-lo-á, e esse funcionário arvorará a sua melhor "gueule", barrindo silenciosamente o seu momento de glória diário. Ao fim do dia, regressará de metro, vitorioso, à frustrante partilha nocturna de um patamar com uns "beurs" ou uns gaboneses.




Já o "pardon" tem em Paris uma propriedade única no mundo. É não-causal. No resto do planeta, o pedido de perdão segue-se a uma falta involuntária. Ali, precede qualquer pequena sacanice premeditada. Imagina-se sem grande escândalo um parisiense a acelerar sobre uma velhinha numa passadeira, assobiando um "pardon" para que a carnificina não lhe pese na consciência ou na digestão do jantar.

Vi "pardons" para tudo: para passar à frente da fila, para fazer razias de patins a carros de bebé, para empurrar um cego ao qual ninguém no metro oferecera o seu lugar, mesmo jovens "bcbg" refastelados a cinquenta centímetros dele.

No domínio dos "monsieurs", o mais ilustrativo foi na FNAC da "Rue de Rennes" quando me dirigi a uma platinada de colete verde e ocre para perguntar sobre a localização da casa de banho. Assim que cheguei a menos de metro e meio, uma qualquer célula fotoeléctrica detectou a minha presença e foram accionadas duas subrotinas no subconsciente da seráfica: "sorriso de merda" e "monsieur". Ouvida a gravação, inquiri. Aí, o sorriso alargou, rasgou-se e veio um quase triunfante "nous n'en avons pas". Fiquei siderado com o prazer que esta donzela para aí da Courneuve sentia com a possibilidade dos seus clientes se borrarem nas calças. Mais do que bizarro, mais do que estranho, pareceu-me vicioso.

Decidi contra-atacar, numa perspectiva meramente sociológica. O primeiro objecto de estudo que se prestou à moca da minha pesquisa social foi um porteiro do Museu Picasso. O museu encerrava às seis, mas quando cheguei às cinco e dez já a bilheteira fechara, possivelmente por falta de pessoal. À porta, uma fonte de simpatia tipo Castafiore fez-me parte, entre "monsieurs" e "pardons", que não havendo bilheteira já não se podia entrar. Ingleses protestavam em mau francês e japoneses em mau inglês. Resignados embora elucidados sob a gestão francesa de museus, aproveitámos par dar lanche às crianças no sossego do pátio do Hôtel Salé.

Foi aí que o personagem na porta do museu mudou. Saída a hárpia, dominava agora a entrada um sujeito mirrado ao qual, se não fosse o identificativo colete azul, se poderia por engano dar cinco francos pela comiseração que inspirava. "É este", pensei. Eram cinco e quarenta. Aproximei-me da porta. Mesma história, "monsieur", "pardon", "apesar de aberto já fechou".

Pedi o livro de reclamações. Os "64 k" do meu interlocutor começaram a ter dificuldades de resposta. Explicou-me que eram cinco e quarenta e cinco, que iriam fechar em breve, que quinze minutos não chegavam para ver o museu e que faziam os melhores esforços para satisfazer os visitantes. Disse-lhe que o problema já se pusera às cinco e dez e que por isso queria o livro de reclamações. Explicou-me que eram cinco e quarenta e cinco, que iriam fechar em breve, que quinze minutos não chegavam para ver o museu e que faziam os melhores esforços para satisfazer os visitantes.

Percebi então que o indígena não entendia o conceito de "livro de reclamações". Clarifiquei: "nos países avançados as entidades integradas de algum modo na administração estatal e que prestem serviço ao grande público devem ter um livro onde este possa manifestar queixas ou apresentar soluções". E deitei umas gotas de veneno: "como a França é civilizada, deve cá haver um".

O meu interlocutor mostrava indícios de espasmo cerebral. Explicou-me que eram cinco e quarenta e cinco (já não eram), que iriam fechar em breve, que quinze minutos não chegavam para ver o museu e que faziam os melhores esforços para satisfazer os visitantes, tudo misturado com a metodologia de fecho das salas, a vistoria da polícia, a simpatia dos funcionários, três "pardons" e muitos "monsieurs".

Num canto do cisne intelectual, sugeriu-me que escrevesse ao ministro da Cultura, e seguiu perorando, exausto. Decidi dar por terminada a experiência, aliás fortemente conclusiva.

O parisiense não descende, como os outros cinco biliões, do macaco. Qual ornitorrinco, as suas múltiplas e misteriosas ascendências entroncam em dois jurássicos antepassados: o mastodonte de onde lhe veio a tromba e o "diplodocus" do qual herdou o sorriso ruminante e a noz cerebral, cujas frágeis capacidades eu cruelmente pusera à prova naquele desgraçado porteiro.



2) As velhas e os cães

Para exemplificar a noção de bijectividade, capaz de perturbar os mais ágeis cérebros que assombram os nossos liceus, basta em Paris descer à rua e abrir os olhos: qualquer velha sustem, na ponta de uma trela, um cão; todo o cão arrasta, do outro lado da corda, uma velha. Esta evidência dos "boulevards" tem como consequência - cuja demonstração se deixa como exercício ao leitor- que há em Paris tantos cães quanto velhas, e verifica-se por observação visual que são muitas as velhas e logo são os cães não mais do que as mães mas sim tantos quanto as velhas.

O formalismo matemático deste pitoresco fenómeno não se esgota porém nesta relação biunívoca. Outras leis são aplicáveis. Definindo D como uma dimensão característica da velha e d como o comprimento do cão, verifica-se Dd=K1, constante. Como corolário deste teorema, os cães não são nada grandes. Mais, sendo T a idade da velha tem-se Td=K2 , constante. Destas duas relações infere-se um crescimento do diâmetro das velhas linear com a idade.

Voltando ao tamanho dos bichos, vêem-se em Paris poucos cães de porte altaneiro, que se dêem ao respeito. Um ou outro "boxer" com ar enfiado, aqui e ali um pastor alemão com complexo de raridade, e basta. Cães que se vejam não há, e o que se vê são "pinschers", "chihuahuas", "fox-terriers", "lulus" da Pomerânia e outros roedores do mesmo calibre. Qualquer raça minorca capaz de entrar num bueiro e de sair com o mesmo aspecto é candidata à trela das velhas.


Atreladas, as desgraçadas ratazanas são ainda seviciadas com tótós, mises e permanentes, encasacadas em fraldas e panos de "tweed", e sujeitas a todas as mariquices possíveis ou imagináveis. Naturalmente desforram-se, debitando por todo o lado cócós de um tamanho desproporcionado.

Metade de Paris assemelha-se a um campo minado, e é ver os parisienses a ziguezaguear entre montes e montes, dando ridículos pulos sobre a ponta dos pés. Apesar destes cuidados, uma grande percentagem está pisada e quando pisa, o parisiense tem um comportamento curioso. Em vez de limpar discretamente na borda do passeio, arrasta a pata durante milhas, esborratando o chão com os traços do seu conceito de higiene. Este abominável comportamento, só explicável pela necessidade de partilhar com outros a sua desgraça, resulta em lajes de calçada muito artísticas, da escola abstracta, em que o primarismo dos montes disputa o olhar ao secundarismo dos riscos. Não é arte nova, mas é por certo uma nova arte.

Cães e donas proporcionam espectáculos dos mais inéditos. Numa das "allées" do parque do Champ de Mars, a avenida Anatole France, fechada ao tráfego, duas senhoras com físico de "sumo", já balzaqueanas - ou mesmo corneillianas - passeavam cada qual seu animal. Mas não de qualquer maneira. Seguiam lado a lado, cada uma no seu triciclo a motor com cerca de quarenta centímetros de altura. As pobres máquinas, bufando sangue, debitavam toda a sua potência ao veio para deslocar infinitesimalmente as cargas brutas que as espalmavam. A velocidade era aí de cem centímetros à hora. Para cada lado deste conjunto saía uma longa trela na extremidade da qual um chouriço com quatro pernas tentava desesperadamente arrastar-se até ao relvado. O alçado desta procissão tinha bem uns dez metros de frente. Quem distraidamente caminhasse desde a torre Eiffel, e se deparasse de repente com tão sórdido espectáculo, sentiria na pele os calafrios dos sentinelas alemães das praias da Normandia que na madrugada de 6 de Junho de 1944 olharam bocejando pela fresta do "bunker".

Uma tão grande proliferação de mulheres sós só com cães, sublimando nestes o melhor do seu afecto, tinha que ter uma explicação. E esta encontrei-a junto ao Sena, conforme conta o parágrafo seguinte.


3) O declínio da "baguette"

Passando numa tarde de Domingo em frente ao Hôtel de Ville, fui surpreendido por um espectáculo invulgar. A placidez móvel da praça, que inspirou a Robert Doisneau a imagem imortal de um dos mais torcicolosos beijos da história da arte, fora substituída pela azáfama de uma muito original feira de padeiros.

Singelas barraquinhas representativas dos diversos países comunitários prestavam discreta homenagem a duas vastas tendas brancas onde uma pequena multidão de enfarinhados de touca branca reclamava a representação dos oitenta mil padeiros franceses. Enquanto sob as lonas se batia a massa e se distribuíam brindes com imagens de espigas e maçarocas, um altifalante a roçar a histeria alertava para o diminuição da visibilidade dos padeiros franceses e daí para a importância da feira.

Preocupei-me. A acreditar naqueles bons homens, apesar da idade esforçados diante da abertura afogueada dos fornos, a França já não via o padeiro como noutros tempos, e as consequências sociais deste triste facto podiam não ser as melhores.

Concordei e entrei na primeira tenda. Entre uma tômbola e uma máquina de peneirar, um cartaz de um metro de altura alertava para o declínio da "baguette" francesa. Na fotografia, um cacete empinava-se contra um céu azulado, com uma atitude de cerca de setenta graus. Se bem que um pouco abaixo do preceituado nas exigentes normas em vigor mais a sul, pareceu-me um ângulo perfeitamente honesto. Honesto, mas em perigo de sobrevivência. Os textos, os discursos, as conversas em redor não deixavam dúvidas: ou os franceses mudam de posição e voltam a interessar-se pela arte do pão, ou a "baguete" francesa dará lugar ao "gressino" italiano, ao "panecillo" espanhol, à pesada broa portuguesa ou mesmo ao "pita" (o do Próximo Oriente). O inimigo já espreita de algumas das tendinhas.

Saí desconsolado, mas esperançado que os receios dos bravos padeiros gauleses fossem algo exagerados. Uma subida pela "Rue Vieille du Temple" retirou-me as ilusões. A cada esquina, à porta das boutiques da moda, nas esplanadas dos cafés, entre beijos e abraços, dezenas de mancebos parisienses trocavam a indústria da panificação pelos devaneios da charcutaria.

A continuar assim, à França só lhe resta uma de duas soluções: ou importa mais padeiros ou importa mais cães.


4) Chinelas, patins e outros artefactos

Paris tem uma fauna curiosa. Sentar num banco dos Campos Elísios e ficar a ver os transeuntes subindo e descendo o largo passeio é um exercício intelectualmente motivante que releva do zoólogo mais do que do esteta, apesar de algumas beldades passantes.

Há em Paris uma preocupação de excentricidade que não revejo em nenhuma outra capital da Europa. Desde o executivo ao "punk", passando pelos adolescentes borbulhantes ou pelas serigaitas recauchutadas, toda a gente tenta ser algo diferente de toda a gente. Este esforço universal de fuga à mediania acaba por resultar num conjunto homogeneamente pimba, um espectro plano tipo "ruído branco" em que só se houve o gritante de algumas farçolices com que julgam ficar muito mundanos. Todos diferentes mas todos iguais e igualmente lamentáveis.

Começemos por quem pretende vestir bem. Na Europa há duas escolas de elegância: a italiana e a inglesa. Igualmente respeitáveis, igualmente eficazes, exactamente como conduzir pela esquerda ou conduzir pela direita. É uma questão de sistema. Em Portugal, em Espanha, segue-se a influência italiana, como aconteceu em muitas artes. Na Holanda, nos países nórdicos, predomina um corte inglês. Em França, optou-se por uma bizarria tipo "um país, dois sistemas" que não vai nem pela esquerda nem pela direita, vai pelo meio da estrada a atrapalhar o trânsito, confunde, baralha. Tudo isto polvilhado por influências alemãs adquiridas por osmose fronteiriça ou derrota militar, sabendo-se que os alemães não primam pela sobriedade no equilíbrio das cores.

O quadro francês veste portanto mal. Mesmo quando acerta com o fato e este com os sapatos -o que já será uma feliz coincidência a obsessão local pelo artefacto levá-lo-á a escolher a gravata mais caleidoscópica que esteja disponível. No limite teremos fatos escuros e gravatas com "ratos Mickey" ou "marsupilamis".

O artefacto, pequeno detalhe berrante que pretende criar diferenciação, surge nas mais diversas formas. Penteados de "raper" com roupas betinhas, ténis Nike fluorescentes com "tailleurs" de bom corte, frase intelectualóide num discurso baço tipo "Bernard Pivot". Mais recentemente, na moda das chinelas.

A primeira que vi, justamente nos Campos Elísios, apenas me surpreendeu. "Coitada, distraiu-se ao sair à rua", pensei. Mas alertada a minha atenção, comecei a reparar e embasbaquei. Arrastando-se sobre a calçada, milhares de chinelas chinelavam, correndo desorientadas em todas as direcções. De todas as cores, de todos os formatos, de todos os tamanhos, competindo por um hipotético prémio de beleza que iria fatalmente sair à casa, formavam um longo formigueiro subindo e descendo do Arco do Triunfo ao Obelisco. Os dedos dos pés, esquálidos e com as unhas pintadas de verde ou azul, tentavam minhocar para fora, por qualquer orifício que lhes aparecesse, como cobras fugindo dum incêndio no mato. Este espectáculo de pesadelo parecia indiferente às dondocas que no piso superior arrastavam os pés pela calçada, imperturbáveis na sua convicção de esplendor feminino.

E o telemóvel? Espanta-me que as estatísticas dêem a França como um dos países de mais baixa taxa de penetração do celular. Todos os aparelhos devem estar em Paris, pois não há parisiense sem o seu na mão. Por todo o lado toca, buzina, apita -até no metro. As pequenas atendem, é o amado, e passados três segundos está o caldo entornado: "t'as pas le droit de me parler comme ça !". Ficamos todos a saber os detalhes, e assim se viaja distraidamente até à "Porte de La Vilette". Infelizmente, este género de discussões à distância não dá azo a reconciliações súbitas "a la San-Antonio", do tipo "acoudée au piano", o que também seria interessante de ver.

Outro artefacto na berra é os patins em linha. Com os sapatos às costas e os patins nos pés, Paris desliza pelo passeio em alta velocidade. Atléticos negros e executivos magricelas, jovens estudantes de cai-cai e velhotas momentaneamente sem cão, tudo rola. Convencidos dos seus direitos, os patinadores vão espantando com a tromba os transeuntes menos lestos que não pulam a tempo para a sarjeta ou por uma porta adentro. Pelo caminho vão deixando cair "pardons" para se livrarem da fama de animais.

Alguns patinadores mais timoratos decidiram, provavelmente após algumas quedas aparatosas, recuperar dos arquivos da História um forma de transporte menos perigosa: a trotinete. Disse bem, a trotinete. Imagine-se umas cavalonas com idade para outras provas ciclistas, atravessando de trotinete na passadeira, a dar à chinela. Eu vi, claramente visto, e por pouco não acreditei.

Se este regresso ao passado dos transportes pega moda, corro o risco de na minha próxima vinda a Paris ver quadrigas pelas avenidas, liteiras nas praças de táxis, riquexós e americanos, forragem nas estações de serviço e polícias de trânsito de armadura. E, isto sim, seria algo de verdadeiramente diferente.


5) A glória do Exército

Os Portugueses orgulham-se dos Descobrimentos, e a sua arquitectura monumental é disso um reflexo: a Torre de Belém, os Jerónimos, o Terreiro do Paço, mais recentemente o Padrão das Descobertas e até a Expo exaltam os nossos navegadores como pólo primeiro do orgulho nacional. Em França, os Descobrimentos foram substituídos pela Glória Militar, e por todo o Paris se avivam os feitos da "Armée": nos Invalides, no Dôme, no Arco do Triunfo, na Concorde e por uma miríade de outros sítios.

Tudo bem. Cada povo tem brio no que quer: os ingleses na família real, os brasileiros no escrete, os cubanos no Fidel e é por isso legítimo que os franceses celebrem as suas vitórias militares. Mas há um porém.

Porém se atentarmos, os celebrados são sempre os mesmos: Napoleão, Primeira Grande Guerra (Joffre, Foch, e os táxis do Marne) e Segunda Grande Guerra (libertação de Paris, De Gaulle e - pasme-se - De Lattre de Tassigny). E isto baralha. A França tem uma história longa, e heróis a celebrar, desde as machadadas do Clovis até aos passes milimétricos do Zidane. Pelo meio, um cardeal que não se entendia com o rei e um rei que não se entendia com o banho transformaram o país numa potência mundial e ainda deixaram balanço que deu para duzentos anos. Mas não são Richelieu ou Luís XIV os festejados.

Sendo rigoroso, nos últimos dois séculos a França não se saiu nada bem dos confrontos em que o seu Exército se meteu:

- Napoleão foi sem dúvida um brilhante táctico e comandante militar, mas um míope estratega. Ganhou muitas batalhas mas perdeu a guerra. Devia ter lido Sun Tzu: "O auge da competência é conquistar o inimigo sem lutar. Quando as campanhas são longas, esgotam-se os recursos do Estado" ou "O bom general traz o inimigo para onde quer lutar". E não se mete pela Rússia adentro, acrescentaria eu. A imagem que os ingleses têm de Napoleão, moribundo, visitado por Wellington na hora da morte, é a imagem real. A derrota de Napoleão marca o início do declínio do poderio francês, que ainda continua, à sombra tutelar do bloco anglo-saxónico. É pena que os Franceses não celebrem a obra civil do corso, essa sim inovadora e marcante em toda a Europa.
- Obviamente não muito visível na monumentália local, a Guerra Franco-Prussiana foi a cabazada do século. Paris só não foi arrasada porque não calhou. O Sacré-Coeur, majestosa promessa de dois devotos endinheirados, lá está para nos lembrar a dimensão do susto.
- A vitória da Primeira Guerra é uma vitória à Vale e Azevedo. Vai a reboque dos Estados Unidos. Quem ganha a guerra é o torpedo alemão que motivou o presidente Wilson a enviar os "boys" para a Europa. Os alemães quase chegam a Paris (outra vez). O Joffre, rapaz brilhante, após Verdun e Somme, é substituído pelo Nivelle, que é substituído, para evitar que o pessoal se amotine, pelo Pétain - mais conhecido pelo acocoramento de Vichy. O Foch ainda faz no final alguma figura, mas quem vence a guerra e impõe os termos do armistício são os americanos.
- Na Segunda Guerra, pior ainda. Um exército mal equipado e pior comandado é arrasado num arder de fósforo. O país é totalmente ocupado. Parte das suas chefias acaba por trair a pátria numa república fantoche. Enquanto o De Gaulle se entretem a fazer de Fernando Pessa francês, os ingleses, os americanos e os russos esfalfam-se para ganhar a guerra e ainda têm a gentileza de dar aos franceses um sector da Alemanha e uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. Sempre a reboque.
- Depois a Indochina. O De Lattre de Tassigny encontra a glória fazendo-se massacrar por uma bactéria, apesar do nome. Segue-se Dien Bien Phu e o regresso a casa com o rabo entre as pernas. Pelo meio a traição do almirante Thierry D'Argenlieu - começa a ser um hábito.



Perante este panorama, há que reconhecer que em termos militares, desde há muito tempo, a França está numa divisão diferente dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha e até da Rússia. Não se percebe muito bem que raio celebram eles.

Nós, Portugueses, lembramos Aljubarrota mas pelo menos ganhámo-la. Festejamos os Descobrimentos porque conseguimos meter os barcos dentro de água. Se todos fossem como os Franceses, os Portugueses já teriam erigido um grandioso memorial aos sucessos da sua selecção de hóquei no gelo e os Suíços e os Checos cantariam a glória dos seus feitos navais.


6) A França profunda

Numa pequena capela da cripta do Sacré-Coeur, dei de caras com um França da qual só tinha ouvido falar, em livros e em filmes. A cripta não é um lugar piedoso, é beato, muito para além do que se pode ver em Fátima que é para os que crêem um Lugar Santo. Enquanto nesta, apesar dos desvios, dos exageros e das razões históricas, um ateu como eu pode observar de fora -por vezes com ciúme- uma relação entre o Homem e a sua Fé, no Sacré-Coeur é a Igreja que se celebra e parece não haver lugar para Deus.

Na capela, duas estátuas guardam a saída. Dois arcebispos do fim do século XIX, sentados num pedestal de pelo menos um metro e vinte. Há que olhar de baixo para cima. O artista era engenhoso, atingiu os seus intentos, quase que me atrevo a reconhecer uma obra-prima. A curvatura das costas, o olhar patético, a mão estendida, o sorriso ao mesmo tempo amável e comiserado, quase babando, ilustram uma Igreja ciente da sua superioridade esperando dos seus fiéis o sacrifício de si próprios no altar dos homens.

Naquele lugar ainda se acendem velas a uma qualquer Isabelle que por essas alturas foi a Roma, aos treze anos, pedir ao Papa que a deixasse entrar para um carmelo qualquer. Ali, ninguém se parece chocar por uma flor pedir ao jardineiro para morrer no vaso. E isto passava-se quando lá fora, a duzentos metros, Picasso desfazia a mala preparando-se para iniciar uma revolução na pintura.

A França tradicional, desta Igreja e daquele Exército, muito tricolor, desconfiada da diferença, a França que condenou Dreyfus e matou Meursault, estes duzentos ou trezentos anos de França, desapareceram?

Todos os povos têm seus mitos constituintes e reconfortantes. Portugal tem sonhos de grandeza porque foi Grande: país pequeno, estabeleceu um império mundial, promoveu uma revolução tecnológica, alimentou uma transformação cultural, tudo feito com liderança, planificação e uns enormes tomates.

O mito francês não é de grandeza mas de superioridade. Criado pelo poderio dos séculos XVII e XVIII, este mito foi depois exacerbado nos séculos XIX e XX pelos sucessivos líderes de Napoleão a Mitterrand, desligando-se cada vez mais da realidade. Forjou o mito do grande exército, apoiou-se no dossel da Igreja. Só que, se a França foi superior, já deixou de o ser há muito tempo. O facto de os franceses não o terem percebido ou terem dificuldades em engoli-lo é, segundo Kissinger, o drama nacional.

Aquela França não desapareceu porque demorará gerações a desaparecer, tal como o bolor do Salazarismo não sairá tão cedo dos recantos da mentalidade portuguesa. Aquela França é uma França profunda, que já não se sobressalta com uma pintura ou com o sexo, mas que vive nos tiques, nas trombas, nos "pardons" e nos "monsieurs", na pequena boca sobre o árabe ou sobre o português, na necessidade absoluta de se diferenciar para que pelo menos a imagem que tem de si seja superior à essência de um povo a necessitar, pelo que vi, de um "revamping" cívico.


Este texto tem oito anos, o que explica algumas referências. É uma visão sobre o pior dos parisienses, tal como o anterior era uma perspectiva do melhor que a França nos deu.

2 comentários:

NunoF disse...

Ias muito bem até citares o Kissinger, aí perdeste toda e qualquer razão eh eh eh :-)

De qualquer modo, a minha opinião é que o está no outro texto não justifica o que está neste...

Ou seja, 100 anos de grandes escritores, 50 anos de geniais pintores, 20 anos de grandes cineastas, 2 ou 3 grandes filósofos não dão à França e aos franceses o direito de se sentirem arrogantemente melhores que quaisquer outros e de esfregar isso na nossa cara.

Cristina Rodo disse...

Não lhe ligues Carlos que ele só está bem a cascar em tudo e em todos... É o Nuno 2007...
Passei eu 10 anos a tentar suavizá-lo... desperdício.
Dito isto...grande produção bloguística hein?! (Nuno, o meu corrector recusa-se a corrigir estas duas últimas palavras... socorro!!!)
Estou cheia de inveja, eu pessoalmente ando completamente desinspirada...
Gostei deste. (e do outro sobre a França tb, by the way...)Consigo ler-te cada vez melhor, devo ter apanhado inteligência...
Não comento o da exposição, que logo que vi a foto fiquei mal disposta... nem sei o que pensar sobre o assunto de tal maneira fiquei abananada.
Relativamente aos Franceses e à França, acho que eles basicamente são no geral uns idiotas, racistas, xenófobos, cagões... e que a França tem de facto coisas absolutamente fantásticas vá-se lá saber como.