sábado, maio 12, 2007

World Godless Photo: da arte e do vazio (II)

Continuação de post de 1 de Maio


Ao redor de 1562, Pieter Bruegel o Velho pintou “O triunfo da Morte”. Embora feito num século em que o Homem retomou o seu destino entre mãos, “O triunfo da Morte” respira ainda a Idade das Trevas. Num cenário de fim do mundo, exércitos de esqueletos arrebatam e matam quem encontram, individualmente ou em grupo. No primeiro plano, a reacção das pessoas é diversa: há quem combata, há quem se esconda, há quem se submeta. Alguns fogem para dentro de uma caixa com uma cruz na entrada, procurando refúgio num símbolo seguro, mas aquela não parece ter saída. O combate surge como desigual e, logo, sem esperança: um infinito de esqueletos espera do lado direito para entrar em acção, todos munidos de escudos e lanças. Ao centro, como um rio descendo o vale, aproxima-se mais tropa maligna. Todas as classes sociais sofrem de igual modo diante do triunfo da Morte: no canto inferior esquerdo, um rei com a sua armadura e manto de arminho. Mais adiante, burgueses, guerreiros, doentes, menestréis, damas, a todos espera-os o mesmo destino. À medida que o nosso olhar se afasta para o horizonte, vamos sendo informados, pelos detalhes que Bruegel foi distribuindo pelo segundo plano, que não vale a pena ir para lado nenhum: a Terra está em chamas, os Céus enchem-se de negro, cadafalsos exibem enforcados, vítimas ajoelhadas esperam a queda da espada que os decapite. Só no canto direito do quadro, sobre o mar, se pode encontrar alguma luz, um resto de paz. Mas não creio que esteja lá para dar um sinal de esperança, até porque a fumarada, soprada pelo vento, ameaça cobrir em breve esse último refúgio. Penso que essas derradeiras pinceladas de luz servem apenas para equilibrar a composição e para puxar o nosso olhar através dos sucessivos planos que compõem a imagem.



Para o homem medieval, existia um universo oculto e maligno, mas tão real como o visível, habitado por demónios e outros seres danados, comandados por esse contraponto caído personificado no Diabo. Esse lado da existência, num tempo de incertezas e noites escuras, amedrontava e ao mesmo tempo fascinava. Este quadro foi certamente influenciado por essa visão do mundo: Bruegel retratou mais do que uma vez imaginários povoados de seres disformes e obscenos, possivelmente inspirado pelo estilo do seu compatriota Bosch. Mas aqui foi um pouco mais além: o lado positivo deixou de existir. Deus e a esperança de redenção que traz não marcam presença nesta pintura. A morte não é mais uma porta para um além desconhecido, que pode ser o da existência eterna ou o do fim sem fim dos tormentos no inferno. A Morte torna-se a essência do mundo: os seus exércitos inspiram medo, e não esperança, pelo que a Morte vem retratada como o Mal ou o Fim. Bruegel parece estabelecer aqui um princípio filosófico particularmente pessimista sobre a natureza das coisas. Contrariamente às fotos da exposição, em que a guerra gera o mal e este surge como consequência e testemunho da guerra, no quadro manifesta-se um Mal estrutural, que aparece neste caso sob a forma da guerra, como poderia aparecer como peste ou fome.

Bruegel foi certamente influenciado pelo tom e pelos acontecimentos da sua época. Em 1567, o Duque de Alba chegou a Bruxelas, mais a sua tropa. Filipe II de Espanha tinha-o incumbido da simpática tarefa de converter à força os protestantes e o duque levou a coisa à letra, levando à morte milhares de pessoas e em última instância à cisão dos Países-Baixos. Inaugurou por aquelas bandas um estilo de acção política rígido nos princípios e contraproducente nos resultados: terá sido o primeiro eurocrata de Bruxelas. Em justa homenagem, ainda se hoje se chama duque de alba a um tipo de estrutura portuária suficientemente bruta para aguentar o embate da acostagem dos navios.

Não se sabe se Bruegel tomou partido entre católicos e protestantes: talvez se tenha prudentemente mantido na retranca. Mas pode deduzir-se, de algumas das suas obras, que tinha suficiente simpatia pelos protestantes para dar umas bicadas subtis no Duque de Alba, pintando um cavaleiro de armadura negra em situações menos simpáticas. Podemos especular que o quadro “O triunfo da Morte” pretendia também transmitir uma mensagem política, ao representar uma identidade entre a guerra e o Mal. Se atentarmos que o tipo de representação do cenário de guerra (as forcas, os incêndios, as rodas de tortura) nos recorda muitas das imagens da época sobre as guerras de religião e sobre a Guerra dos 30 anos, esta pintura procuraria induzir uma associação entre os exércitos de esqueletos e outros bem reais que espalhavam o terror pela terra: os espanhóis de Filipe II.


Se no primeiro exemplo os espanhóis são os maus da fita, no segundo são as vítimas. Em 2 de Maio de 1808, na Madrid ocupada pelos exércitos napoleónicos, um soldado francês foi mandado do cavalo abaixo e levou um enxerto de porrada. O general Murat, que ganhara os galões de marechal a comer uma irmã do imperador, proclamou que sangue francês tinha sido derramado e tratou de organizar a desforra, No dia seguinte, a França mostrou a sua grandeza fuzilando cerca de quatrocentos civis, entre pedintes, monges, mercadores e outros perigosos terroristas. Como a História se repete! Seis anos depois, Goya retratou o massacre num quadro intitulado “O três de Maio de 1808”.

Goya pintou-o, juntamente com outras obras, por razões muito pulhamente materialistas: para manter o seu salário de funcionário real, dando graxa ao novo monarca absoluto de Espanha, Fernando VII. Este manteve-lhe o cacau mas guardou o quadro num armazém, como prova de absoluta consideração. Hoje em dia, podemos admirá-lo no Prado.



Nele, vemos homens disparando sobre outros homens. Apenas o título da obra nos permite relacionar o facto histórico com o que é representado. Talvez aquela silhueta de igreja seja familiar aos madrilenos. Talvez os barretes dos soldados fossem característicos do exército francês. Mas nitidamente Goya afastou-se de uma realidade formal para que ela não prejudicasse a restituição daquilo que lhe pareceu ser o essencial da cena. O resultado é uma composição quase teatral, como que de actores dispostos num palco, representando a natureza da bestialidade humana. Com a excepção do rosto do personagem central, as posições e expressões são rígidas e irrealistas, como nos “manga” japoneses, preocupando-se apenas em traduzir de forma eficaz um conceito único: o desespero, a raiva, o medo ou a incompreensão dos condenados, que contrastam com a firmeza cinzenta e monolítica dos soldados.

Goya não presenciou os acontecimentos, nem se preocupou em documentá-los. Para um liberal como ele, para quem a Revolução Francesa representava a ruptura com o passado que ele desejava para Espanha, o comportamento dos soldados franceses deve ter sido dilacerante. Eventualmente por isso, Goya afasta-se de uma mensagem política específica, de crítica da violência napoleónica, para produzir um retrato mais lato da individualidade humana, valor supremo, atacada num acto sacrílego pela força bruta.

No centro do quadro, destacado pela perspectiva, pela cor e por uma luz irrealista, como se um projector celeste o iluminasse, um homem, um homem comum, provavelmente igual a milhares de espanhóis da época, abre os braços e uma cara de espanto ao pelotão de fuzilamento. A sua expressividade, o misto de sentimentos que essa expressão veicula, de incompreensão, receio, angústia, resignação e até de alguma serenidade, contrastam com a frieza sem face dos executores. Aquele homem banal desbanaliza a violência da guerra, ao contrário das fotografias da exposição, tornando a morte e a dor inúteis no problema central do universo. Outros acabaram de ser mortos e uma fila sem fim visível espera o seu destino. Mas no instante que Goya pintou, no preciso momento em que vai ser abatido, este homem simboliza toda uma humanidade vítima do abuso do poder da força e todos as pessoas que morreram sob o jugo daqueles que acham que a razão do colectivo se pode arrogar o direito de destruir a preciosidade irrepetível da nossa individualidade.

Um detalhe, suficientemente discreto para ser um detalhe mas suficiente visível para não deixar de ser visto, reforça esta mensagem: as chagas nas palmas das suas mãos, que juntamente com os braços em cruz nos remetem para a figura de Cristo. Não para nos dizer que este homem seja Cristo, mas para nos lembrar que Cristo foi este homem, sofrendo às mãos de outros e que cada assassinato não é um momento menor da História, mas antes uma repetição desse instante fundamental de rasgo que foi o martírio. Por outro lado, talvez este pormenor traga uma ténue nota de esperança a esta pintura. Afinal, tal como Cristo ressuscitou para ver a sua mensagem vingar pelo mundo, poderá ser que os direitos dos indivíduos vão renascendo das cinzas e que um dia prevaleçam sobre a violência e o arbítrio.

Goya realizou o “O três de Maio de 1808” num enquadramento histórico e filosófico muito diferente daquele em que Brueghel viveu. Uma dezena de anos antes, tinha sido redigida em França a “Declaração universal dos direitos do homem”. Tradições, direitos ancestrais e ideias antigas que pareciam imutáveis sofriam o desafio entusiasmado de um número sempre crescente de pessoas que entendiam que todos tínhamos os mesmos direitos, bem como o dever de defender esses direitos. O homem já não se via como um elemento passageiro e anónimo de um eterno formigueiro, correndo por instinto o carreiro da vida e só fugindo desnorteado perante a morte inesperada, mas antes como “a medida de todas as coisas”, relembrando o conceito platónico que podemos encontrar, de forma intensíssima, no âmago deste quadro.


To be continued…

2 comentários:

NunoF disse...

Então e as fotos?

Cristina Rodo disse...

Pois, então e as fotos?
Ó Carlinhos andas com pouco trabalho é?
Podes ficar com um bocadinho do meu que não me importo (podes vir limpar as mijas da cadela, por exemplo)que nem tempo nem cabeça tenho tido para escrever no meu bloguito, qualquer dia não tenho leitores...
Porra, que verborreia...LOLOLOLOLOL