terça-feira, maio 08, 2007

Meditação ateia

“The brain - that's my second most favourite organ!”
Woody Allen



Para os meus amigos budistas e afins, a revista Visão da semana passada trazia um interessante artigo de divulgação sobre os mais recentes progressos científicos na investigação do funcionamento dos nossos cérebros, com boas e más notícias.

As boas são que a meditação se calhar funciona mesmo. As más resultam do facto desse funcionamento não ter nada a ver com transcendências. Investigadores da Universidade da Califórnia, inspirados nalguns aspectos das práticas de meditação budistas, desenvolveram terapias comportamentais que permitiam inibir certos comportamentos patológicos. Curiosamente, os resultados finais assemelhavam-se aos obtidos através da ingestão de determinadas drogas, mas os mecanismos fisiológicos envolvidos eram substancialmente diferentes. No caso das terapias que usavam a introspecção, o fenómeno em causa advinha da capacidade do próprio pensamento poder afectar a estrutura material do cérebro, através da alteração de ligações neuronais: a neuroplasticidade.

Muitos dos progressos das neurociências parecem aliás indiciar um resultado que a mim surge como intuitivo, mas que pode perturbar certezas a quem tiver a fortuna de as ter: que muitos aspectos do comportamento humano que tendíamos a associar a uma componente imaterial do nosso ser, como as emoções, a consciência, a reflexão, a memória, criam-se a partir de processos físicos, correntes sanguíneas, trocas de iões entre células, ondas eléctricas. Se calhar, consequentemente, não existe uma alma que se apresente a um juízo final ou que se reintegre no todo de um ser superior. Como dizia a voz do Ringo Star no filme “Yellow Submarine”: “It’s all in the mind!”. Ou melhor: “in the brain!”

Milhões pelo planeta fora sentir-se-ão desaforados com tal perspectiva. Não haver nada a seguir é chato, para quem esperava paraísos idílicos, múltiplos regressos sob formas exóticas ou batalhões de virgens à mão de semear. Que isto os ensine a valorizar cada momento da vida de forma mais solene, tanto a deles como a dos outros.

O facto de a nossa capacidade de pensar, de julgar, de sentir ou de amar poder ser mais gerida pelas leis da termodinâmica do que por leis divinas não deve levar a uma perspectiva materialista, pelo contrário.

É ainda mais maravilhoso saber que a nossa admiração diante de um poema, do brilho nos olhos de uma criança, de um prodígio científico ou de um dito de bom espírito, resultam da nossa, humana, capacidade de levar essa amálgama de células e impulsos eléctricos a criar realidades de ordem superior.

Ainda por cima, tal capacidade faz recair sobre nós uma responsabilidade acrescida. Se não houver seres superiores para tomar conta dos nossos disparates ou dizer-nos como nos devemos portar, teremos que ser nós a fazê-lo: a prática da sobrevivência e a ética da vivência tornam-se assunto dos homens, e não dos deuses.

3 comentários:

NunoF disse...

Se ainda não leste, recomendo vivamente a leitura de "O Erro de Descartes" do António Damásio.

Na tese dele, a razão nasce das nossas emoções, e as nossas emoções têm origem nos sentidos do nosso corpo.
O estado de espírito, da mente, ou os sentimentos e o sentir são apenas um reflexo do estado do corpo e o sentimento é um ingrediente indispensável do pensamento racional.

Descartes afirmou que o pensamento é a prova da existência, a verdade essencial. Damásio afirma que ao contrário, o corpo é a génese do pensamento e logo esse pensamento é inerente a um corpo onde não existe nenhum espírito.

Perante isto, só nos resta ficar espantados perante quão espantosa e complexa é a evolução da vida na Terra.

CMata disse...

Li sim senhor, embora seja um livro difícil e por vezes nebuloso. O Damásio é certamente um grande cientista, mas não tão grande divulgador.

Abraço

Cristina Rodo disse...

Olha que porra,isso são más notícias, eu que tinha cravado o livro ao Nuno... Se é "difícil e nebuloso" já não sei se quero.

Quanto à meditação, devo ser de facto uma perfeita ignorante porque nunca pensei que fosse nada de transcendental... A minha ideia era que a meditação fizesse ao cérebro um bocado a mesma coisa que as gazes fazem aos intestinos e ao estômago dos indianos, limpar. Estava convencida que a ideia era esvaziar o cérebro de ideias para de certa maneira o "reciclar".
Viver e aprender...