Há tempos, amigos a quem não se recusa um convite convidaram-me a visitar a inauguração da exposição “World Press Photo 2006”, no CCB, em Lisboa. Noite quente de Setembro, lá me encontrei naqueles pátios de palácio sumério, um sítio de que muito gosto, onde Lisboa se eclipsa ao primeiro passo entre paredões de pedra clara. Numa das salas interiores, uma centena de pessoas acotovelava-se a caminho da supostamente indispensável mesa dos copos, comendo pastelitos de bacalhau patrocinados pelo Banco Espírito Santo que pinguins de travessa serviam em acrobáticos rodopios. O bru-á-á reinante convidava quem se sentisse jantado a seguir rápido para a zona de exposição, consideravelmente mais deserta. Era o meu caso e assim fiz.
A mostra dividia-se em categorias e cada uma atribuía vários prémios, somando para cima de quatrocentas fotografias ou seja mais de quatro centenas de desgraças. Sala após sala, exibiam-se a miséria, a fome, a morte que a guerra traz e a morte que a natureza impõe, a velhice, a cupidez e a doença. Em suma, o fracasso da espécie. Aqui, uma bota cardada percutia uma cara de esgar, nalguma rua togolesa. Ali, sobreviventes de um sismo paquistanês esticavam as mãos como que para um Cristo, na esperança de ver-se atribuído um cobertor com o logo da Cruz Vermelha. Acolá, uma criança guatemalteca, oportunamente andrajosa e suja, lançava os braços numa pose de encomenda.
Num rasgo de exibicionismo quase indiferente, um tal de David Guttenfelder atirava-nos com um metro quadrado de pai e filho num hospital terceiro-mundista com rachas na parede, a criança em pranto agarrada pelo seu único braço a um homem de olhar desamparado, enquanto uma mão enluvada lhe aplicava desinfectante num cotozito em primeiro plano. Com tanta sensibilidade, o David não podia deixar de arrancar um primeiro prémio ao júri de seus pares.
E assim continuava, saleta após saleta, pretenso sub-tema após pretenso sub-tema. Para a despedida, uma parede de peitos mastectomizados anunciava o último furo jornalístico da World Press Photo: o cancro existe e causa sofrimento.
Voltei à sala do burburinho a precisar de um banho. O volume baixara um pouco. Alguns resistentes atacavam nos rissóis e num tinto de meio de tabela. Um dos meus convidantes, antigo racionalista agora convertido à fé, ficara à porta, à conversa com uma pessoa. Recomendei-lhe em amigo que não entrasse, porque fé que tivesse podia perdê-la, à vista daquele mundo desertado por Deus, que mais de quatrocentas chapas e as parangonas do catálogo diziam ser o nosso, para mal dos nossos pecados. Passou um empregado de olhar tardio, periclitando copos de sumo de laranja de pacote. Cedi à oferta e emborquei aquela purga, a ver se limpava o sabor a amargo que a visita me deixara, como se o brometo de prata se me tivesse fixado na garganta. E ia pensando: mas seria mesmo? Aquelas fotos estar-nos-iam a contar a história toda? Ou reflectiriam apenas parte?
Em boa verdade, fotografias poucas vi, vi sobretudo reflexos, imagens como que capturadas por um espelho: lineares, objectivas e acríticas. Um espelho é um plano onde se olha para o vazio e se vê uma ilusão. Melhor: é o próprio lugar do vazio. A imagem de um espelho não existe, é uma construção óptica, um truque físico para enganar os nossos sentidos e com eles o nosso conhecimento. O que observamos não só não está lá como está invertido: o que parece esquerdo é direito e o direito esquerdo. Por estas, os antigos viram o espelho como um objecto manipulador, malévolo na representação que projectava do lado de cá para o lado de lá. Quem já sentiu a surpresa dos sentidos ao tentar agarrar nas mãos uma imagem virtual constituída à frente do plano físico, e não atrás, saberá que eles tinham razão.
Poder-me-ão dizer: “Numa exposição de fotografia jornalística, que esperavas? Não devem os jornalistas simplesmente retransmitir o que vêem nos eventos que cobrem?” Sim, mas depende. Que cobrem estes jornalistas: o momento em que um miliciano do presidente Fauré Gnassingbe espeta com um pontapé nos dentes de um oponente indefeso, ou será que cobrem “a guerra”? Duas crianças miseráveis das ruas da Cidade de Guatemala, ou a “condição humana”? Se pretendem cobrir as primeiras, talvez tenham realmente batido “felizes instantâneos”, capturado digitalmente um evento singular, um “delta tê”. Mas se pretendiam reportar as segundas, e não as primeiras, ou seja, a essência e não o instante, falharam redondamente, porque a realidade é – no seu melhor e no seu pior – mais complexa, mais rica e mais viva do que aqueles primeiros e segundos prémios maldosamente pretendem fazer-nos crer.
Pode uma imagem retratar a realidade? Pode, sim. Pode mesmo amplificá-la. Revejamos, como exemplo, sobre o mesmíssimo tema da guerra, de que modo a pintura resolveu esta questão em três exemplos com séculos de intervalo.
To be continued…
3 comentários:
Como o comentário que ia fazer degenerou num testamento, desta vez resolvi responder no meu blog.
Comentário curto e cínico:
Wanting people to listen, you can't just tap them on the shoulder anymore. You have to hit them with a sledgehammer, and then you'll notice you've got their strict attention.
- John Doe, "Se7en"
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