domingo, fevereiro 16, 2014

Nada y pues nada



Mataspeak andou mortiço durante 2013. Isto não é exactamente ao quilo ou ao quilómetro, mas quinze textos mais quatro “posts” de fotografias envergonham um bocado. E 2014 começou igual, com um Janeiro de bico calado.

Comecei vários ficheiros, onde arremessei ideias sem a força suficiente para se transformarem em textos, como quando mandamos um seixo, escolhido no cascalho da margem pela sua boa planura,  a rodopiar contra a superfície de um lago e ele se afunda à primeira com um som mole em vez de dar a meia dúzia de ressaltos que esperávamos dele. Quando tal acontece tendemos a acusar o seixo, por pouco hidrodinâmico, ou a água, por falta de densidade. Qualquer especialista em mecânica dos fluidos, ou à falta deste qualquer criança, nos dirão que a culpa é mas é da nossa falta de jeito no lançar.

Pois assim andei-me eu, a justificar-me. Os problemas do trabalho, os atilhos com os filhos, a vontade de sono, a falta de tempo. Tudo retirava inspiração, mas tudo era treta: não sofri nenhuma catástrofe, dormi quando tinha que dormir e estraguei minutos preciosos em actividades de chacha. Nada justifica portanto senão uma injustificável preguiça. Ou às vezes uma abrupta sensação de vazio, de falta de sentido das coisas. Não sei se foram os cinquenta anos que me atropelaram de repente, quando me dei conta que o horizonte estava mais próximo e mais incerto, mas por momentos perguntei-me porque estava aqui a escrever estas coisas. E nesses momentos gravei o ficheiro e fui à vidinha.

Mas há pelo menos um sentido. Há por exemplo um revelado num pequeno texto de Hemingway intitulado “Nada y pues nada”, um texto solto publicado em edições mais recentes do “Paris é uma festa”. Hemingway relata um diálogo que teve em Cuba com um jornalista chamado Evans, que partilhara com ele muito passado, na guerra de Espanha e noutros sítios. Evans estava a fazer a cobertura de umas corridas de cavalos, apesar de sofrer com um cancro do pâncreas em fase terminal e já só se aguentar a muita morfina e de andar com um dreno a expelir a maleita. Desse diálogo consta o seguinte:

“Evans: ...Mas tens que continuar porque escreves por todos nós.

Hemingway: Quem são “todos nós”?

Evans: Não te faças difícil. Quero dizer nós dos primeiros tempos e dos melhores momentos e dos maus momentos de Espanha. E depois este outro e tudo desde então e o tempo de agora. Tens que lá pôr o engraçado e o resto que só nós sabemos, que estivemos nalguns lugares estranhos em momentos estranhos. Fá-lo por favor mesmo que nunca mais queiras pensar nessas coisas. E tens que pôr lá também o agora. Eu estou tão ocupado com os cavalos que já não sei o que é o agora. Só o meu agora.”

Mais à frente, quando vai a sair para o médico, Evans insiste com Hemingway para ele não se esquecer da escrita e Hemingway responde a Evans que sim na última linha do diálogo e confirma-nos a nós leitores, logo no parágrafo seguinte, repetindo que não se esquecerá.

Ora aqui está um sentido plausível para escrever: como obrigação para com os outros, os que não tiveram oportunidade ou os que já não podem ou os que merecem umas linhas para que o agora deles não se perca. E se pelo menos um sentido existe, é muito possível que haja mais: escrever por respeito aos que usam do seu tempo, do seu agora, para nos ler; ou então por nós, para nos dar um sentido aos dias, ao nosso agora; ou simplesmente porque sim, porque de facto porque não?

Vou pois fazer como Hemingway e atravessar-me. Prometo não me esquecer da escrita, doravante. Não que eu tenha pretensões a Hemingway, como não tenho ambições de Maradona só porque jogo umas futeboladas. Acontece que nós, os pequeninos, acabamos por procurar lições nos grandes e imitamos, à falta de mais. Hemingway pegava no seu dia-a-dia e no dos outros e transformava-o em eternidade, muitas vezes à força de murros. Eu alinho umas linhas, sem mais gasganete do que alinhá-las, o que já constitui arrogância suficiente da minha parte.

Por isso, “nada y pues nada”.