terça-feira, fevereiro 18, 2014

A escola da rua da palha



Há uma linha de Pessoa, salvo erro pela voz de Alberto Caeiro, que diz que “O único mistério é haver quem pense no mistério”. Embora o poema onde consta trate de assuntos sérios, Deus e o sentido da vida e tal, este verso assim solto assalta-me muitas vezes quando vejo discutir à exaustão aquilo que é indiscutível. Discutir o que nem vale a pena discutir é um dos desportos nacionais a par do futebol e do hóquei em patins. O único mistério para mim é haver quem debata certas questões como se houvesse algum conteúdo para divergência, como se elas tivessem dois lados, como se não fosse evidente aquilo de que estamos a falar. Uma das últimas destas é a questão das praxes académicas, que surpreendentemente só foi suscitada pela morte trágica de seis jovens e não, como deveria ter sido, pelo visionamento recorrente em todos os Setembros de manadas de caloiros levados pela corda por calhandreiros que se gabam do número de chumbos e reinscrições.

Para início e fim de conversa, as praxes que vemos hoje nos nossos meios universitários são uma exibição sempre reles e quase sempre criminosa daquilo que pior há no animal-homem se deixado à solta: nos praxantes, o gozo sádico do poder, a vingança comezinha e a indiferença pelo próximo; nos praxados, a cobardia da submissão acéfala ou, pior, a patetice alegre de aspirar pertencer à carneirada; no espectáculo, a boçalidade, a estupidez, a degradação humana, em suma a banalidade do mal – com as minhas desculpas a Hannah Arendt por usar uma expressão dela para falar deste lodaçal.

Não percebo portanto como se litiga ainda o tema, com tempo de antena e páginas de jornais,tanto quanto não perceberia se ministério, reitores, associações de estudantes e comentadores se sentassem a uma mesa a discutir as virtudes e os defeitos das violações colectivas ou dos espancamentos por gangues nos recintos académicos. E o mais grave é que eu não estou a exagerar na comparação.

As razões para este alarido estão muito em se ter perdido o sentido do que é uma universidade. Podemos talvez começar por aqui, manipulando um facto de “petite histoire”. No Quartier Latin, em Paris, existe ainda hoje uma “rue du Fouarre”, onde a primeira universidade parisiense se instalou no século XIII. “Fouarre” é uma deturpação de “feurre”, palavra arcaica que significa “palha” e o nome deve-se ao facto de os estudantes trazerem palha para se sentar nela a ouvir os mestres.  A confusão da rua, bem no coração da cidade, era grande, a ponto de em 1535 o Parlamento ter mandado instalar umas portas nos topos para impedir a passagem de carroças durante os períodos de aulas. Ponho-me a imaginar os alunos, algures à volta de 1300, num dia de inverno, sentados na palha molhada, com a azáfama citadina como ruído de fundo, concentrados a ouvir o professor de pé no púlpito. E esta imagem define para mim o que é uma universidade: um sítio onde pessoas procuram o saber e outras partilham-no. Tudo o resto que lhe ponham à volta é acessório: anfiteatros, cantinas, polidesportivos, sistemas informáticos e o mais que encontramos numa faculdade moderna ajudam ao conforto e à eficiência, mas no limite não são essenciais. Neste sentido dual de professor e alunos e algo de sortilégio a fluir entre eles, a Academia de Platão ou o Liceu de Aristóteles foram universidades, como também o foram muitas escolas primárias onde a paixão de um mestre lançou a centelha que ateou para o resto da vida a curiosidade de uma criança.


Se percebermos que uma universidade é isto, um lugar onde o saber brota e se bebe, onde a nossa procura colectiva se soma e se divide, onde se faz a diferença, onde se constrói pedra a pedra aquilo que mais há de eterno na humanidade, onde se acrescenta um ponto ao conto da ciência, da letra ou da arte, então perceberemos que a praxe e muito especialmente a praxe moderna é a antítese da universidade. A universidade não é um espaço físico ou uma entidade administrativa, é um conceito onde não cabem os “duces veteranorum”, as caras na lama, o riso néscio, as capas e batinas que copiam mal de Coimbra uma tradição da qual não foi percebida a ponta de um corno. Porque a tradição coimbrã era jocosa, marialva e muitas vezes culta, nunca barrasca como a que se sofre agora, conforme poderemos confirmar, de sorriso nos lábios, se lermos o “In illo tempore” de Trindade Coelho.

Pertencer à universidade é um luxo e um privilégio. Eu, que sou filho de pais que não tinham no Portugal salazarista nem o berço nem a condição económica que lhes permitissem estudos superiores, sempre percebi bem percebida a sorte que tive por ter podido entrar no anfiteatro GA1 para ouvir o Prof. Campos Ferreira, de cigarro na boca, explicar a demonstração do teorema de Weierstrass. Apesar de ter feito muitas coisas interessantes em termos profissionais, as aulas que dei durante quase um quarto de século no Técnico serão sempre, a par dos meus filhos, o maior motivo de orgulho e plenitude que levarei desta para melhor. Para mim, um aluno admitido numa universidade deveria ir com a bola baixa e o boné na mão de quem entra numa catedral, não com o pé no chinelo e o arroto fácil de quem se assoma a uma taberna. Vistos do meu ângulo, os auto-denominados veteranos que se divertem alarvemente com miúdas forçadas a simular o sexo que eles gostariam de ter mas lhes deve faltar, ou com rapazes a enfiar a fuça na farinha em sinal de sujeição, não são universitários, por muito que o ministério diga que sim. São uns merdas que para ali andam.

Mas pior que eles, talvez, é esta sociedade que tudo mira com preguiçosa indiferença, que tudo discute com diletante relativismo. Mesmo que difusamente, mesmo que discutivelmente, continua a haver um Bem e um Mal, continua a haver um Bom e um Mau. Talvez, nesta sociedade encandeada pelo brilho dos ecrãs tácteis e confundida pela catadupa de recados insignificantes cuspidos pelas redes sociais, onde abundam os “sites” e os canais de cabo mas escasseiam os minutos e a paciência para um bom livro, nos faltem agora as referências. Por isso as pessoas vêem jovens levar outros jovens humilhados em fila indiana, como antes os escravos para a galera, e não reparam que as semelhanças entre as duas situações são mais do que as diferenças.

Temos talvez que nos preocupar mais em procurar as coisas boas que as coisas boas têm para nos dar. E então mudaremos e não admitiremos mais estas praxes. Mas isso, das coisas boas, será tema para o “post” seguinte.


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