sábado, junho 08, 2013

Cromos da minha caderneta (III) – Moustaki dans ma voiture



1982 foi na minha vida um ano diferente e de diferenças: abandonei o conforto côncavo da escola que me berçou dos desenhos do jardim infantil ao diploma liceal, e troquei-o pelo ambiente marialva e um tanto caótico de uma turma quase exclusivamente masculina de mecânicos do Técnico; perdi amigos, que foram para longe, tendo outros batido ao postigo e instalado-se com algum à-vontade na sala de estar dos meus dias; fiz uma das viagens da minha vida onde conheci uma das mulheres da minha vida mesmo que durante breves duas semanas (mas essas duas semanas são tão parte da minha vida como outras duas semanas quaisquer); e a minha idade rodou no BI para dezoito anos, o que me deu direito a votar, conduzir automóvel emprestado e com alguma petulância julgar-me adulto.

Nesse ano de 1982, o poiso da malta estabelecera-se na casa da da C, na Avenida de Roma, a dez minutos do IST. A C ainda hoje me azucrina a cabeça numa base semanal, graças a Deus, mas na altura a base era praticamente diária: íamos lá para uma converseta, para ver quem mais lá estava, para uma cartada, para assaltar o frigorífico, para um futebol na têvê (foi também o ano do Brasil de Falcão, Zico, Sócrates, Toninho Cerezzo, Eder, Júnior, Oscar, uma equipa de sonho a arrastar um perú na baliza e um perneta na frente e que por isso – e por excesso de peneiras – perdeu a copa para a Itália bisonha mas rata de Rossi e Tardelli). Para retribuir a generosa hospitalidade, introduzíamos a C e mais umas amigas nas aulas do Técnico. Sentadas nas filas de trás do anfiteatro Qa1, davam um ar floral a uma turma de imberbes e mal-escanhoados e eram miradas com torpe interesse pelos alunos e com desconfiança pelo Prof. Ventura, que ia alinhando no quadro negro as equações do movimento relativo enquanto mandava em vão calar o burburinho permanente.


Em casa da C ouvia-se quase exclusivamente canção francesa, a começar na belga: muito Brel, sobretudo a “Ne me quitte pas” repetida e suspirada à exaustão, Brassens (em particular as picantes “Fernande” e “Le gorille”), Moustaki, com destaque para a “17 ans” que a C adorava, Reggiani ou o hoje menos lembrado Maxime Le Forestier, que tinha uns versos sobre uma casa azul que se aplicam que nem uma luva às casas da C, tanto a da Avenida de Roma de então como a da lonjura onde agora mora: “On n’y frappe pas/Ceux qui vivent lá/Ont jeté la clé”.

Nesse mesmo ano de 1982, Moustaki veio dar um concerto ao Coliseu de Lisboa e lá fomos um grupinho. O espectáculo saiu tristonho, possivelmente pela fraca casa: bem mais de metade das cadeiras apareciam vazias, o que pintalgava a sala, parcamente iluminada, com tons de fim de festa. Moustaki lá deu o seu melhor, apoiado por uma bandazita. À medida que o reportório ia decorrendo, a C ia-se inquietando: “Nunca mais toca o 17 ans”.  Amigo diligente, aproveitei uma pausa em que Moustaki, sentado num banco alto, afinava a viola, para rasgar o silêncio que me separava dele com um “Chante 17 ans!” gritado a plenos pulmões. Ele, sem tirar os olhos do que estava a fazer, respondeu placidamente ao microfone: “Oui, mon capitaine”, provocando uma risota na sala. Apesar desta aparente promessa pública, o concerto terminou sem que a canção pedida fosse tocada e foi algo desapontados que decidimos continuar a noite com um copo no Hot Clube, na Praça da Alegria.

Quando o Hot fechou, à hora hoje ridícula que impunha à época o ditame do Governo Civil de Lisboa, também as outras casas de entretenimento da praça despejaram na rua a clientela mais resistente. Entre esta – surpresa, surpresa – estava o Moustaki, que os organizadores do concerto tinham trazido a uma casa de fados ao lado, para cear. Aproximei-me e soltei-lhe:

- Alors, on n’obéit pas à son capitaine?

Ele respondeu atrapalhado algo como “ah era você desculpe lá mas a banda não tinha essa música ensaiada” e assim começou uma conversa que o juntou ao nosso grupo. Moustaki andaria nessa altura pelos seus cinquenta anos. Magro, a barba e o cabelo crespo a grisalhar e anárquicos davam-lhe um ar sem dúvida de meteco, embora talvez não tanto de judeu errante ou pastor grego, como asseverava a estrofe. De poucas palavras, parecia tímido, de uma distância mais reverente que altaneira, o que soava estranho a meio de uma noite em que nós éramos uns miúdos e ele era uma quase-vedeta. E mais estranho ainda foi quando a T sugeriu que todos fossemos a casa dela, na Estados Unidos da América, para um último copo e ele aceitou. Mais uma vez, enchi o Fiat 600 verde-tropa com aquela gente, Moustaki no lugar do pendura, resto ao molho lá atrás, e lá arrancámos com o motor em sobrecarga para casa da T.

Ficámos umas horas na sala da T. Ele tocou para nós, bebeu um bocadinho, falou poucochinho, ouviu bastante. A certo momento, quando a noite já se arrastava cansada, desenhou-se uma atmosfera ou – como dizem no Brasil – pintou um clima entre a T e o Moustaki. Foi a deixa dos restantes para levantar e zarpar. Soubemos mais tarde que a mãe da T, ao acordar de madrugada, encontrou o Moustaki na sua sala e o pôs na rua sem remorso, à portuguesa. Imagino agora o Moustaki às seis da matina, despejado no cruzamento com a Avenida de Roma, sem fazer ideia de onde estava. Provavelmente terá conseguido apanhar um táxi, porque há evidências fortes que pôde regressar a França, onde faleceu este Maio passado, por sorte dele no dia de aniversário do meu pai.

À notícia da sua morte, logo os asneirentos clichés do costume vieram afirmar, nos jornais e na boca dos políticos em homenagem, que a canção francesa ficara mais pobre. Não vejo como: está tudo gravado, para lembrar e para gozar enquanto houver orelhas, coração, neurónios e glândulas lacrimais com que ouvir tudo o que de muito bom ele por aí deixou. Poemas sobre homens livres e bastante mais sobre mulheres belas (que nos seus versos são todas, afinal) e sobre o amor entre ambos, um amor que arranca as máscaras sociais como no “Milord” que compôs para Edith Piaf, o amor que se transcende com o passar do tempo como em “Sarah”, o amor que emana da mulher idealizada da “Chanson pour elle” que arranca com o memorável “elle ne fait pas l’amour, elle aime”, que é para ficarmos logo esclarecidos.

Exposta a matéria de facto, para fechar este cromo vai de seguida o tradicional vídeo. Escolha difícil, mas talvez este “Votre fille a 20 ans”, interpretado por um Moustaki mais idoso e sereno que aquele que eu transportei na minha viatura, funcione bem como homenagem ao homem que partiu e à obra que ficou.  É uma melodia simples e bonita sobre a beleza da mulher, sobre o amor maternal, sobre o tempo que passa, sobre as coisas que são eternas, sobre a fatalidade, a naturalidade e o sublime da primeira vez (“Ils se font un jardin d’un coin de mauvaise herbe”), tudo isto em dois minutos e quarenta e sete segundos. O tipo tinha capacidade de síntese.

1 comentário:

Fernando Vasconcelos disse...

Ah então foste tu? Também lá estava nesse concerto no Coliseu ... com a minha mãe se bem me lembro :-) ... Claro que não houve "depois do concerto" no meu caso ... Grande Moustaki e Brassens de que falas lembra-me sempre a caravana do meu avô quando ele percebeu espantado que também eu gostava de Brassens ... ah toi aussi foram as suas palavras. Le Gorille como nos riamos ... Nostalgia como dizes.