A minha profissão tem-me levado até meio-mundo e permitido
presenciar hábitos variados no pensar, no vestir, no comer e até no acto menos
nobre a que por comer a biologia nos obriga, isto para usar uma perifrase e não
o verbo brejeiro sobre o tema que nos traz aqui hoje. De facto, desenvolvemos
um incómodo tão grande em relação a este assunto que nos referimos a ele usando
o último dos eufemismos, “ir à casa-de-banho”, quando banho é coisa que de
certeza não vamos tomar nessa ida.
Tão selectivo é o nosso cérebro em relação a isto que por
norma só nos recordamos de experiências traumáticas, de desespero incontido ou
nojo extremo. Eu ainda tremo ao recordar a visão da retrete nos sanitários de
uma selecta pastelaria do centro histórico de Viana do Castelo, vai para vinte
anos. Quem viu o filme “Trainspotting”, com a sua célebre cena intitulada “A
casa de banho mais nojenta da Escócia”, poderá ficar com uma ideia do que
aquilo era, mas uma ideia ténue. A nojeira de Glasgow, ao lado da de Viana,
parecia a imaculada assepsia de um bloco operatório. Hércules teve como quinto
trabalho lavar o esterco das cavalariças de Aúgias, para o que desviou o rio
Alfeu. Pois se tivesse tido que limpar a retrete de Viana, os trabalhos de
Hércules seriam onze e não doze, porque mesmo para um semi-deus aquilo era
demais.
Outra perspectiva dantesca tive-a no aeroporto internacional
de Hassi Messaoud, no coração da Argélia, em pleno deserto do Sahara. Este
aeroporto é internacional porque alberga serviços fronteiriços mas é
basicamente uma pista perdida no meio das dunas, onde cães atravessam de um
lado ao outro indiferentes aos Boeings que aterram ou levantam carregados de
trabalhadores das vizinhas instalações petrolíferas. A aerogare é um caixote de
betão de pinta soviética. Enquanto lá esperava pela ligação a Argel, pensei ir
aos lavabos tratar de um assunto. Nesse momento, o meu colega PP, que de lá
regressava, disse-me com cara de quem vira um fantasma:
- É melhor nem entrares.
É do género de frases que acirra a curiosidade e por isso
não resisti a espreitar. A casa-de-banho do aeroporto internacional de Hassi
Messaoud era uma vasta dependência, de uns vinte e cinco metros quadrados, de
paredes lisas de cimento caiado e uma chão de betonilha. No centro da laje
tinha um buraco de cerca de vinte centímetros de diâmetro. Numa das paredes existia
uma torneira com um metro de mangueira agarrado, para efeitos de pós-processamento.
E era isto: mais minimalista do que um quadro do Stella. Utilizar esta
instalação sanitária seria um excelente treino para uma modalidade de biatlo
que combinasse ginástica artística com tiro ao alvo. Pelo chão, poças de água
erráticas e de natureza incerta devolviam irisada a luz forte que entrava coada
por um vidro fosco na parede do fundo. Ao redor do orifício que era o centro
daquele universo, manchas duvidosas insinuavam tentativas mal sucedidas de
viajantes menos habilidosos. Fechei a porta atrás de mim e mentalizei-me para
esperar pelo avião. Ali, um sucesso seria heróico, mas uma queda seria
catastrófica.
No pólo oposto a estes soturnos exemplos está o aparato
tecnológico que encontrei na casa-de-banho do meu quarto no Shilla, o hotel em
que fiquei em Jeju, na Coreia do Sul. Durante os três dias que lá passei nunca
deixei de sentir que havia ali um ser pensante: assim que entrava no quarto e
metia o cartão na fresta que ligava a electricidade, a retrete manifestava a
sua presença com uns zumbidos electrónicos satisfeitos, como que a dizer “hás-de
cá vir parar”.
O aspecto dessa retrete, de linhas aerodinâmicas, era o de
uma consola Nintendo em louça de Sacavém. Um conjunto de botões num ressalto
lateral, do mais moderno recorte estético, prometia funcionalidades
desconhecidas a Ocidente: um traseiro estilizado suportava um esguicho; uma
figura feminina, outro; um terceiro botão sugeria a libertação de um tsunami.
Carreguei num que tinha uma seta e imediatamente com um ruído robótico uma
haste saíu de um esconderijo na cerâmica, apontando-se sem pudor às
privacidades dos utentes. Pois daqui sairiam os esguichos: lembrei-me do “sketch”
do Solnado, com a história do repuxo de cima e do repuxo de baixo. Depois de
ver o protuberante tubo a estender-se tão automático, decidi não carregar em
mais botão nenhum. Tive medo que de algum esconderijo saísse uma mão mecânica,
enluvada como as dos mecanismos do Prof. Pardal, e que se desse a
liberalidades.
Mas mesmo não tocando em botões, o perigo espreitava de
dentro. No fundo da pia distinguia-se um ponto azul, um feixe de luz, através
do qual a retrete detectava a minha presença como se de um olho se tratasse.
Assim que me eu me sentava, trocávamos olhares e a loiça dava-me as boas vindas
ligando imediatamente o aquecimento do assento. Aquele ponto de luz lembrava-me
a câmara com que o computador HAL, no “2001 - Odisseia no espaço”, via os
astronautas. Por isso, de todas as vezes que me dediquei a reciclar a temperada
comida coreana, estive sempre à espera de ouvir sair de algum altifalante
dissimulado a célebre e recorrente tirada do filme de Kubrick:
- What are
you doing, Dave?
E receei que tal como na película, a inteligência
cibernética da retrete decidisse vingar a afronta engendrando algum esquema
para me tramar, eventualmente com recurso a uma haste servocontrolada.
Durante esta mesma viagem à Coreia terminei de ler as memórias
de Gene Kranz, director de vôo dos programas espaciais Gemini e Apollo. O que é
notável no relato de Kranz é a fragilidade e o experimentalismo do conhecimento
e das tecnologias que foram usadas para realizar aquele que provavelmente é o
maior feito de sempre da Humanidade: pisar a Lua. Quer nos motores, quer nos
computadores, quer nas comunicações, tudo era precário quando comparado com o
que há hoje disponível, o que só traz mais brilho ainda à coragem dos
cosmonautas e ao engenho dos cientistas. Qualquer dos nossos telemóveis tem
mais capacidade de processamento que o Centro de Comando em Houston. Até a
retrete do meu quarto na Coreia tinha mais tecnologia do que o Módulo Lunar. O
que não fariam homens com o arrojo de um Armstrong ou de um Aldrin se a
tivessem disponível? Possivelmente, se em vez de num foguetão Saturno V se tivessem
montado neste cagueiro, não teriam só ido à Lua mas teriam pousado em Marte.
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