domingo, junho 30, 2013

Orwell escrevendo sobre Cavaco, Coelho, Seguro e quase todos por aí fora



Em Picadilly, do lado direito para quem vai quase a chegar ao Circus, fica a livraria que John Hatchard criou em 1797 e que é por isso a mais antiga de Londres com a porta aberta. Fornecedora de leitura ao palácio de Buckingham, a Hatchards faz valer o seu direito ao uso do brasão real, ostentando-o bem grande por cima da entrada, com o mote “Dieu et mon droit” que Eduardo III engendrou em 1337 quando tomou a sempre útil decisão de chatear os franceses, iniciando a escaramuça entre primos e sobrinhos que conhecemos como guerra dos cem anos.

A Hatchards percorre-se com o sentimento de quem visita uma casa da burguesia abastada de há um século, com boas madeiras na parede, alcatifas e tapetes, os livros expostos sobre mesas “Regency”. São meia dúzia de pisos forrados a estantes imaculadamente organizadas por temas e ordem alfabética dos autores, ordem que o manuseio ordeiro de quem visita nunca altera. Uma secção está exclusivamente dedicada – marca distintiva da casa – a Churchill, com biografias, colectâneas, edições antigas das suas memórias da guerra. Nos sítios de passagem, se nos distrairmos a mirar as lombadas, corremos o risco de encalhar numa mesa com umas dezenas de livros amontoados, sugeridos pela casa, irmanados por um tema que consta de um pequeno cartão escrito em letra cursiva: livros de viagem ou para uma reflexão política ou para cuidar da saúde ou outra coisa qualquer. Uma dessas mesas, de pernas arqueadas pelos pesos-pesados que aguentava, propunha coisas do estilo do “Guerra e paz”, do “Os Buddenbrook” ou do “Crime e Castigo”, com um cartão que achei particularmente sugestivo e que lia “Everyman’s classics”.


Nesta minha primeira visita à Hatchards encontrei um opúsculo de George Orwell datado de 1945, “Política e a língua inglesa”, de curtas 24 páginas, que comprei por uns ridículos 99 “pence”. Londres é uma cidade caríssima, onde tudo se paga e onde uma bica de mau café inglês vai para duas ou três libras, e portanto Orwell a 0.99£ é o que lá se chama “value for money” e cá se chama uma pechincha. Acho que a única vez que paguei menos do que isto por alguma coisa em Londres foi o acesso urgente aos lavabos na estação de combóios de Paddington, que me custou meia libra. Ainda assim, para quem não quiser pagar os 99 “pence”, o texto está na íntegra neste link.

Orwell começa por nos mostrar exemplos de como uma deficiente escrita, com excesso de metáforas e frases feitas, construções barrocas, preciosismo na escolha dos vocábulos, palavras vazias de sentido ou abuso de estrangeirismos, pode tornar a mensagem incompreensível, mesmo quando – e muitas vezes quando – redigida por doutores e catedráticos. Orwell defende que se escrevermos escrupulosamente (advérbio dele) perguntar-nos-emos a cada frase o que queremos dizer, que palavras o expressarão, que imagens melhor o clarificarão e se estas são suficientemente “frescas” para produzir o efeito pretendido. De seguida, poderemos interrogar-nos se poderíamos ter sido mais breves ou se há alguma expressão mais feia que pudéssemos ter evitado. A alternativa a estes cuidados, continua ele, é simplesmente deixar frases feitas acumularem-se e serem estas a construir o texto por nós, ou mesmo a pensar as ideias por nós, escondendo o sentido mesmo de nós próprios. E é aqui, conclui Orwell, que ocorre a ligação entre a deterioração da linguagem e a política, porque a ortodoxia política pede, segundo ele, esse mesmo estilo amorfo e imitativo.


Este amorfismo que impede a emergência da inteligência pode ser uma forma de inconsciência, se são as palavras que nos manipulam, ou de cinismo, se somos nós que as manipulamos para que o sentido das coisas não sobressaia. Orwell, pensando em factos do “seu tempo”, a continuação da presença colonial britânica na Índia, as purgas estalinistas ou  a bomba atómica sobre o Japão, afirma que o discurso e a escrita políticos desse seu tempo são sobretudo a defesa do indefensável. Não porque esses factos não pudessem ser defendidos no plano conceptual, que podiam, mas porque os argumentos dessa defesa seriam brutais demais para a maioria das pessoas os encarar de frente e incoerentes com as intenções oficiais das diversas linhas políticas. E daí o recurso ao eufemismo e à vaguidão como forma de fazer com que as coisas vão ocorrendo sem grande contestação. E este recurso, esta manipulação voluntária ou a certo momento automática da deterioração da linguagem para que as pessoas – o povo – não vejam claro, é um pezinho na porta de entrada do edifício lúgubre do totalitarismo.

Poderíamos aplicar esta visão de Orwell também ao “nosso tempo”. Os factos em curso são outros: por exemplo a destruição de povos, economias, equilíbrios de direitos e dignidades civilizacionais em nome de uma ideologia e em proveito de uma minoria. Mas a necessidade de não os discutir na sua crueza e de os dissimular debaixo de paninhos quentes, essa é a mesma e é a que ouvimos a Passos Coelho, mas também a Seguro, a Portas, mas também a Louçã e a Cavaco e a Barroso e a Merkel e a Olli Rehn e ao tipo do Syriza na Grécia e por aí fora. Todos defendendo “ad nauseam” que a sua alternativa não tem alternativa e mascarando debaixo de palavras flácidas as consequências das alternativas que sempre existem e que quase sempre representam escolhas difíceis.


Pego num jornal da pilha e abro ao acaso.  O nosso Presidente da República fala de “coesão nacional” e “ausência de desestruturação social”. Com estes eufemismos quer significar que ainda não começou tudo à porrada na rua, que é uma imagem que a classe política teme por razões várias, uma das quais sendo o interesse próprio. Como ainda não desatou tudo ao soco, Cavaco Silva conclui que o povo tem um “grande sentido de responsabilidade”. Ora isto é um exemplo chapado do que o texto de Orwell define como frase vazia de sentido, porque o povo, que é um somatório de pessoas, circunstâncias e comportamentos, não tem sentido de responsabilidade, como não tem inteligência, nem perfídia, nem preguiça, nem dinamismo, nem nada que não seja a aparente resultante de milhões de acções individuais. Por outro lado, o comportamento colectivo que Cavaco aqui convenientemente elogia como responsabilidade do povo (a leniência diante da opressão) é exactamente o oposto daqueloutro (a revolta diante da opressão) que os livros com que ensinamos História às nossas crianças elogiam como grandeza ou coragem do povo, por exemplo quando no século XIV o povo de Lisboa se mobiliza para defender o Mestre de Avis numa luta dinástica cujo resultado expectável seria tão incerto e os riscos tão elevados quanto hoje seriam uma saída do euro ou um bater do pé à “troika”.

Do nosso primeiro-ministro foi difícil encontrar discurso directo que servisse aqui de exemplo, porque agora o governo contratou na academia um ministro maduro que se poiou para câmaras e microfones e que fala por todo o executivo, chefe incluído. A cada dia, tal como um pescador do Índico, Maduro mergulha em apneia nas águas turvas dos ministérios e emerge à hora do telejornal com as mais recentes pérolas da verborreia governativa. Num jornal de uma quarta recente leio que este porta-voz, ao ser inquirido sobre divergências na coligação PSD-CDS, responde que “por comparação”, Portugal tem uma coligação muito coesa. Ora isto é nada dizer, porque por comparação é melhor ter cinco metástases no cérebro do que dez ou perder três filhos num acidente do que quatro. Ainda na mesma tirada, refuta que o governo queira despedir funcionários, embora não prometa que não o fará, um exercício bastante clássico de dizer uma coisa e o seu contrário, e que o quer é “requalificá-los”. Tecnicamente, o uso do termo “requalificação” até pode ser besuntado com um verniz de verdade, porque o que se propõe é mudar a qualidade dos alvos de “funcionário” para “desempregado”. Mas eticamente utilizar esta palavra remete para algumas grandes mentiras da História, como por exemplo a de que o trabalho liberta. Sair-se com uma palavra como requalificação significa apenas que não há coragem para se afirmar o que efectivamente se pensa. Dizia Mark Twain que há três categorias de mentiras: as mentiras, as mentiras abomináveis e as mentiras estatísticas. Acima temos os três tipos.

Poderia continuar com o líder daquele arrufo a que por cá se chama oposição, com as suas inexplicadas “novas ousadias” e “novas políticas”, ou com a comissão liquidatária da Europa e o seu “entusiasmo” com o “sucesso” da “solidariedade” para com os países “auxiliados” ou com a chanceler alemã e o raio do “rigor” ou com qualquer outro falante destes tristes tempos, mas poupo-vos ao sacrifício, até para não avariar de vez a tecla das aspas.

Depois desta travessia no deserto de ideias, regressemos ao oásis de clarividência de Orwell, que resumia este vínculo entre má linguagem e má política na frase “o maior inimigo de uma linguagem clara é a insinceridade”. A linguagem política - concluía ele - é feita para fazer a mentira parecer verdadeira e o assassinato respeitável. Como em Portugal somos um povo de brandos costumes que, como gozava Solnado, só mata assim-assim, talvez cá a linguagem política se foque mais em tornar respeitáveis a vacuidade e a pequenez do que propriamente o assassinato. Mas cá ou lá, então como agora, o esforço de fuga ao sentido das palavras revela apenas a relação fácil que os homens têm com os seus piores defeitos.

Em directo da natureza humana para o Mataspeak, foi o repórter George Orwell.  

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