Lisboa-Francoforte-Pequim-Jeju-Seul-Dubai-Lisboa: assim
pelos ares foi a minha semana antes da da Páscoa, com quase quarenta horas de
voo. Deu para uns bochechos de sono, alguma leitura e uns quantos filmes sob os
auspícios da Air China e da Emirates.
Revi pela enésima vez o “2001 Odisseia no espaço” e pela
enésima vez me fiquei a interrogar sobre o sentido da cena final que
provavelmente não tem só um mas vários. Vi e sorri muito com o “Butch Cassidy
and the Sundance Kid”, que tradutores com excesso de alforria intitularam em
Portugal “Dois homens e um destino”. Só nos anos sessenta, com o optimismo
estrutural da época, se faria um
“western” assim, com tantos tiros e tão poucos mortos, com diálogos de um humor
tão surreal e com música – pasme-se o topete – do Burt Bacharach. Em todo o
caso, um excelente Paul Newman ao lado de um Robert Redford em menor forma.
Gramei ainda, é verdade que em estado meio cataléptico, com “A rede social”,
que confirmou as minha suspeitas de que só um cara-de-cu encartado conseguiria
parir uma coisa tão viscosa e fascizante como o “Facebook”.
Vi também o Lincoln, um bom filme, com uma reconstituição
histórica de grande gabarito e uma interpretação de facto magistral de Daniel
Jay-Lewis: desta vez reconheço que não se trata de propaganda de “Hollywood”.
Jay-Lewis brilha tanto na construção de um personagem complexo em que se cruzam
o sonhador que pugna pela perenidade de uma ideia com o político habilidoso e
cínico q.b. que manipula para a fazer vingar, ou o líder paternal de um país em
guerra com o homem de família a braços com um destino trágico, como na sua
restituição na tela. Nada revela mais a superioridade de um actor do que um
grande plano da cara durante um monólogo longo e Jay-Lewis passa essa prova
sucessivas vezes com grande à-vontade, modulando voz e músculos e olhar com
invulgar subtileza e trazendo à vida o Lincoln que ainda hoje transparece com
vividez nos seus escritos. Aliás, diga-se de passagem que será difícil captar a
riqueza desta interpretação sem ter lido previamente Lincoln, o que por sorte
eu tinha feito há cerca de um ano, como aqui relatei no blogue.
Finalmente, vi o “Argo”, que constituiu uma agradável
surpresa. Ben Affleck nunca na vida será um grande actor, mas algo promete aqui
enquanto realizador. Argo é um “thriller” eficaz, que captura bem o ambiente
totalitário crescente na revolução iraniana, mas não de forma maniqueísta, não
fugindo às gordas culpas no cartório que o Ocidente tinha na situação. O
momento mais substancial do filme, à volta do qual a acção orbita, é a decisão
muito pessoal de Mendez, o agente encarregue de tirar seis diplomatas
americanos do país, quando decide avançar com a operação apesar de novas
instruções em contrário das suas chefias, para não abandonar essas pessoas à
sua sorte. Mendez fá-lo apesar de saber que irá partilhar com os que vai ajudar
um risco de vida, se falhar, mas também um risco de carreira, se tiver sucesso.
E por isso “Argo” é sobretudo um filme sobre o Dever, sobre o momento em que a
nossa consciência fala mais alto do que os medos, sobre o ápice em que num
lampejo nos tornamos mais livres, quase livres. Talvez de facto livres. Disso
se trata, muito mais do que uma fita de acção sobre um resgate de reféns
durante a revolução iraniana.
Tanto “Lincoln” como “Argo” se podem simplificar como sendo
histórias sobre homens intimamente compelidos a fazer aquilo que acharam certo
fazer-se. Mas enquanto Lincoln o fez sobre o grande palco da História, com
todos os olhares sobre ele e destinado à memória dos povos, Mendez, em “Argo”, toma
uma decisão solitária, condenada ao esquecimento, com ele próprio como única
testemunha saciada pelo bem feito. São pessoas como a que Affleck encarna, heróis
anónimos que quotidianamente por esse planeta fora discretamente se chegam à
frente, que permitem o consolo de pensar não sermos afinal, nós humanos, uma
espécie tão rasteira e infestante como transparece da informação que
quotidianamente polui os nossos noticiários.
Neste momento, recordo aqui duas histórias mais próximas sobre
homens desses que não foram escravos.
Em criança, ia muito durante as férias no Algarve para casa
de um padrinho da minha mãe, médico de profissão. Era um homem grande, de olhar
cansado, de longos horários, um joão-semana que atendia doentes de segunda a
sábado em quatro ou cinco terras diferentes. Certa vez, ele regressava a casa na
companhia da mulher debaixo de um
temporal tremendo, de noite, com pouca visibilidade, pelas curvas da serra algarvia,
quando de repente quase que bateu numa grande pedra que rolara pelo barranco
abaixo, impelida pela chuva. Evitou a colisão “in extremis”, conseguiu
controlar o automóvel e pará-lo metros à frente. Aí saiu do carro, foi até à pedra,
empurrou-a com esforço até à berma e regressou completamente ensopado para
seguir viagem, perante o aborrecimento da mulher:
- Olha em que estado ficaste! Porque tinhas que ir fazer
aquilo? Não tinhas já passado?
- Eu já. Mas o próximo ainda não.
A outra: quando uma jovem doutouranda no meu departamento na
universidade começou a trabalhar comigo numa das cadeiras que eu lá dou, perguntou-me:
- O seu pai não trabalhava no Hotel Ritz? Não era lá
director?
- Sim, porquê?
- Que coincidência. Porque o meu pai trabalhou com o seu
pai. Lembro-me bem porque ele me contou que o seu pai foi a tribunal
testemunhar a favor de dois trabalhadores num processo de despedimento.
- Tem a certeza? Não me lembro nada de ouvir falar nesse
episódio.
- Quase de certeza, mas eu confirmo com o meu.
Dias depois, confirmou-me que falara com seu pai e de facto
assim tinha sido. A empresa despedira dois funcionários de forma injusta e eles
pediram ao meu pai, que conhecia os factos, que testemunhasse por eles contra a
entidade patronal. Pela altura em que isto correu, percebi que seria pouco após
ele ter ascendido à direcção do hotel, após anos de subida a pulso a partir de
uma posição modesta. E compreendi imediatamente que ele fora colocado num
dilema, entre fazer o que a sua consciência acabou por lhe ditar ou em
alternativa proteger-se, não pondo em
risco uma promoção recente que culminara anos de esforços, turnos e dedicação,
negando-se portanto a prestar aquele testemunho. E tomada a sua decisão,
cumpriu o seu dever e nesse dia jantou em casa como se nada fosse, sem uma referência
ao sucedido, sem uma palavra de auto-elogio, como se o dia fosse um dia como os
outros e não um dia absolutamente heróico.
A ambos estes pequenos episódios falta a tensão dramática, de
vida ou de morte, da situação retratada em “Argo”. Mas todos partilham a mesma centelha
ancestral que brilhou no olhar do primeiro homem livre. Porque não há homem
mais livre do que aquele que faz o que a sua inteligência lhe dita, quebrando
as grilhetas do medo, da convenção, da preguiça ou meramente da inércia.
Cumprir o dever que reflectidamente nos impomos, optar por vontade pelo sacrifício
do bem-estar imediato em prol do que julgamos ser a nossa obrigação, tal é o que
nos pode diferenciar das hordas de escravos que em todos os tempos calcorreiam
as ruas dos sucessivos impérios. Só quem o faça, sempre ou amiúde, ganha o
direito de afirmar a sua liberdade. Por honestidade aqui confesso, com algum
mal-estar, que não é infelizmente o meu caso.
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