sexta-feira, março 29, 2013

Dever



Lisboa-Francoforte-Pequim-Jeju-Seul-Dubai-Lisboa: assim pelos ares foi a minha semana antes da da Páscoa, com quase quarenta horas de voo. Deu para uns bochechos de sono, alguma leitura e uns quantos filmes sob os auspícios da Air China e da Emirates.

Revi pela enésima vez o “2001 Odisseia no espaço” e pela enésima vez me fiquei a interrogar sobre o sentido da cena final que provavelmente não tem só um mas vários. Vi e sorri muito com o “Butch Cassidy and the Sundance Kid”, que tradutores com excesso de alforria intitularam em Portugal “Dois homens e um destino”. Só nos anos sessenta, com o optimismo estrutural da época,  se faria um “western” assim, com tantos tiros e tão poucos mortos, com diálogos de um humor tão surreal e com música – pasme-se o topete – do Burt Bacharach. Em todo o caso, um excelente Paul Newman ao lado de um Robert Redford em menor forma. Gramei ainda, é verdade que em estado meio cataléptico, com “A rede social”, que confirmou as minha suspeitas de que só um cara-de-cu encartado conseguiria parir uma coisa tão viscosa e fascizante como o “Facebook”.

Vi também o Lincoln, um bom filme, com uma reconstituição histórica de grande gabarito e uma interpretação de facto magistral de Daniel Jay-Lewis: desta vez reconheço que não se trata de propaganda de “Hollywood”. Jay-Lewis brilha tanto na construção de um personagem complexo em que se cruzam o sonhador que pugna pela perenidade de uma ideia com o político habilidoso e cínico q.b. que manipula para a fazer vingar, ou o líder paternal de um país em guerra com o homem de família a braços com um destino trágico, como na sua restituição na tela. Nada revela mais a superioridade de um actor do que um grande plano da cara durante um monólogo longo e Jay-Lewis passa essa prova sucessivas vezes com grande à-vontade, modulando voz e músculos e olhar com invulgar subtileza e trazendo à vida o Lincoln que ainda hoje transparece com vividez nos seus escritos. Aliás, diga-se de passagem que será difícil captar a riqueza desta interpretação sem ter lido previamente Lincoln, o que por sorte eu tinha feito há cerca de um ano, como aqui relatei no blogue.

Finalmente, vi o “Argo”, que constituiu uma agradável surpresa. Ben Affleck nunca na vida será um grande actor, mas algo promete aqui enquanto realizador. Argo é um “thriller” eficaz, que captura bem o ambiente totalitário crescente na revolução iraniana, mas não de forma maniqueísta, não fugindo às gordas culpas no cartório que o Ocidente tinha na situação. O momento mais substancial do filme, à volta do qual a acção orbita, é a decisão muito pessoal de Mendez, o agente encarregue de tirar seis diplomatas americanos do país, quando decide avançar com a operação apesar de novas instruções em contrário das suas chefias, para não abandonar essas pessoas à sua sorte. Mendez fá-lo apesar de saber que irá partilhar com os que vai ajudar um risco de vida, se falhar, mas também um risco de carreira, se tiver sucesso. E por isso “Argo” é sobretudo um filme sobre o Dever, sobre o momento em que a nossa consciência fala mais alto do que os medos, sobre o ápice em que num lampejo nos tornamos mais livres, quase livres. Talvez de facto livres. Disso se trata, muito mais do que uma fita de acção sobre um resgate de reféns durante a revolução iraniana.

Tanto “Lincoln” como “Argo” se podem simplificar como sendo histórias sobre homens intimamente compelidos a fazer aquilo que acharam certo fazer-se. Mas enquanto Lincoln o fez sobre o grande palco da História, com todos os olhares sobre ele e destinado à memória dos povos, Mendez, em “Argo”, toma uma decisão solitária, condenada ao esquecimento, com ele próprio como única testemunha saciada pelo bem feito. São pessoas como a que Affleck encarna, heróis anónimos que quotidianamente por esse planeta fora discretamente se chegam à frente, que permitem o consolo de pensar não sermos afinal, nós humanos, uma espécie tão rasteira e infestante como transparece da informação que quotidianamente polui os nossos noticiários.



Neste momento, recordo aqui duas histórias mais próximas sobre homens desses que não foram escravos.

Em criança, ia muito durante as férias no Algarve para casa de um padrinho da minha mãe, médico de profissão. Era um homem grande, de olhar cansado, de longos horários, um joão-semana que atendia doentes de segunda a sábado em quatro ou cinco terras diferentes. Certa vez, ele regressava a casa na companhia da mulher debaixo de  um temporal tremendo, de noite, com pouca visibilidade, pelas curvas da serra algarvia, quando de repente quase que bateu numa grande pedra que rolara pelo barranco abaixo, impelida pela chuva. Evitou a colisão “in extremis”, conseguiu controlar o automóvel e pará-lo metros à frente. Aí saiu do carro, foi até à pedra, empurrou-a com esforço até à berma e regressou completamente ensopado para seguir viagem, perante o aborrecimento da mulher:

- Olha em que estado ficaste! Porque tinhas que ir fazer aquilo? Não tinhas já passado?
- Eu já. Mas o próximo ainda não.


A outra: quando uma jovem doutouranda no meu departamento na universidade começou a trabalhar comigo numa das cadeiras que eu lá dou, perguntou-me:

- O seu pai não trabalhava no Hotel Ritz? Não era lá director?
- Sim, porquê?
- Que coincidência. Porque o meu pai trabalhou com o seu pai. Lembro-me bem porque ele me contou que o seu pai foi a tribunal testemunhar a favor de dois trabalhadores num processo de despedimento.
- Tem a certeza? Não me lembro nada de ouvir falar nesse episódio.
- Quase de certeza, mas eu confirmo com o meu.

Dias depois, confirmou-me que falara com seu pai e de facto assim tinha sido. A empresa despedira dois funcionários de forma injusta e eles pediram ao meu pai, que conhecia os factos, que testemunhasse por eles contra a entidade patronal. Pela altura em que isto correu, percebi que seria pouco após ele ter ascendido à direcção do hotel, após anos de subida a pulso a partir de uma posição modesta. E compreendi imediatamente que ele fora colocado num dilema, entre fazer o que a sua consciência acabou por lhe ditar ou em alternativa  proteger-se, não pondo em risco uma promoção recente que culminara anos de esforços, turnos e dedicação, negando-se portanto a prestar aquele testemunho. E tomada a sua decisão, cumpriu o seu dever e nesse dia jantou em casa como se nada fosse, sem uma referência ao sucedido, sem uma palavra de auto-elogio, como se o dia fosse um dia como os outros e não um dia absolutamente heróico.

 

A ambos estes pequenos episódios falta a tensão dramática, de vida ou de morte, da situação retratada em “Argo”. Mas todos partilham a mesma centelha ancestral que brilhou no olhar do primeiro homem livre. Porque não há homem mais livre do que aquele que faz o que a sua inteligência lhe dita, quebrando as grilhetas do medo, da convenção, da preguiça ou meramente da inércia. Cumprir o dever que reflectidamente nos impomos, optar por vontade pelo sacrifício do bem-estar imediato em prol do que julgamos ser a nossa obrigação, tal é o que nos pode diferenciar das hordas de escravos que em todos os tempos calcorreiam as ruas dos sucessivos impérios. Só quem o faça, sempre ou amiúde, ganha o direito de afirmar a sua liberdade. Por honestidade aqui confesso, com algum mal-estar, que não é infelizmente o meu caso.

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