sábado, janeiro 14, 2012

A melhor hora


“-This could be the worst disaster NASA's ever faced.
-With all due respect, sir, I believe this is gonna be our finest hour.”

Resposta de Gene Kranz, director de vôo da Apollo XIII,
a um dos directores da NASA, no filme com o mesmo nome

No outro fim-de-semana, rodando os canais da têvê de braço esticado, aconteceu apanhar a menos de meio o “Apollo XIII”. Ora eu já vi o filme por inteiro duas vezes, mas apesar disso deixei-me ficar e voltei a viver as peripécias verídicas de Jim Lovell, John Swigert e Fred Haise à deriva pelo espaço numa casca de noz analógica arrebentada por uma explosão. E voltei a vibrar com os esforços de toda aquela gente de camisa branca e óculos de massa, sentada diante de ecrãs remotamente pré-históricos na sala de controlo da NASA em Houston, para os trazer para casa. E, estranhamente, já é a segunda ou terceira vez que isto acontece precisamente com este filme e pus-me a perguntar aos meus botões porque será que perco sempre duas horas a rever o já muito visto. Certamente não por ser uma grande obra: uma fita quadradona, certinha e sem riscos, quase um documentário, com uma costela patrioteira ianque ainda por cima.

Talvez porque retrate um estranho mundo, que parece tão peculiarmente distante e perdido no tempo que me pergunto se alguma vez existiu, em que as coisas que pareciam impossíveis pareciam possíveis. Em que os corpos graves se tornavam ligeiros e as distâncias insuperáveis curtos saltos. Em que sonhos milenares da humanidade se cumpriam e perguntas sem resposta eram respondidas, mesmo que só pela metade, porque sempre traziam novas perguntas. Em que a fé tinha-se na espessura da ciência e não na película ténue da tecnologia de pechisbeque dos “smartphones”, dos ecrãs de plasma e de outros expositores de menus deslizantes.

Mas existiu, sim. Nesse mundo, para aqueles homens de carne e osso que aqueles actores encarnam,  o fracasso não constituia opção enquanto o último esforço não fosse tentado, a derradeira solução não fosse pensada, o último murro na consola não fosse dado. E deles dependia a vida que outros homens arriscavam quase impensadamente e por isso era tão preciosa. Homens estes que atravessaram o muro do som sem saber o que estava do outro lado só porque havia um muro para passar e um outro lado para ver o que havia. E que depois se montaram num petardo de trinta e tal andares e entraram em órbita, acreditando que voltariam e voltaram.


Poderão dizer aqueles a quem este entusiasmo possa parecer pueril que havia um contexto político e ideológico e etc., e que nada daquilo passava por inocente no meio de uma guerra fria. Sei disso tudo, mas pouco interessa. Tais detalhes são a espuma da História. Relevante, relevante, foi cumprirem-se em menos de um decénio as palavras de Kennedy: “iremos à Lua e faremos outras coisas, não por serem fáceis, mas por serem difíceis.”

Nesse mundo dei eu os meus primeiros passos e vi nascer alguns dos meus interesses e formei a minha visão de e para onde devemos ir, visão que partilhava com muitos da minha idade e que marcou o que quis estudar, o que quis ler, que profissão escolhi e como a levei por diante – de um certo modo, o que quis ser.  Porque por diante era o caminho e o desconhecido resolvia-se apenas com um pouco mais de esforço. Os da minha idade, que leram as bandas desenhadas dos personagens da Disney naquelas versões brasileiras que comprávamos nos quiosques, recordarão talvez a frase publicitária que o inventor maluco Prof. Pardal tinha na parede do seu “atelier”: inventa-se tudo; o impossível demora mais um dia.


De vez em quando há mundos desses, em que a Lua ou a Índia ficam à mão de semear, em que as abóbadas não caem, em que as crianças deixam de morrer de varíola, em que se mede com rigor o diâmetro da terra contando o número de passos entre Alexandria e Assuão. Hoje esses mundos parecem longíquos, e os povos cabisbaixos reduzem a bitola e vergam-se aos ditames medíocres do possível. Reúnem-se em cimeiras estéreis e proferem num comunicado em papel “sound bites” que perduram um dia em vez de afirmar de cima do púlpito frases que marcam uma década.

Quando eu era criança, nos tempos desse outro mundo, à casa onde eu passava férias ia uma senhora de quem os mais velhos diziam “ela não acredita que o homem foi à Lua”. E nós, os mais pequenos, íamos ter com ela enquanto passava a ferro, estranhados com esse cepticismo:

- Ó Céu, tu não acreditas que o homem foi à Lua?
- Eu não, meninos.
- Mas tens que acreditar, é verdade, não viste na televisão?
- Isso são filmes, meninos, eles não estavam mesmo lá. Alguma vez aquilo podia ser?
- Ó Céu, nós vamos arranjar uns livros com fotografias para te mostrar.
- Meninos, isso já não é para mim, é para vocês.

E com este final diplomático lá continuava a dar ao braço, imperturbada na sua descrença, pousando sobre a nossa decepção um olhar terno nos olhos repisados por setenta anos de muito labor e um sorriso de misteriosa sabedoria. A Céu tinha todas as desculpas para a sua desconfiança: era uma mulher de grande simplicidade, que não tivera estudos e que se construira a si própria sem ajuda. Ganhara o direito a acreditar ou deixar de acreditar no que lhe apetecesse.  Mas mesmo ela sabia que o mundo poderia ser outro, como se deduz da sua última resposta. Hoje, ao revés, a descrença da Céu está no poder nos palácios e nas chancelarias, pela mão de pessoas que beneficiaram de todas as oportunidades e teriam portanto outras obrigações, mas que como ela se reduzem ao seu pequeno mundo próximo de limitações e receios – ainda por cima sem o viço da Céu e com muitos mais vícios.

Dantes, fomos à Lua. Agora, nem à Terra conseguimos chegar.