domingo, janeiro 30, 2011

Atrasados mentais

« Et comme l’enfance est sans défense

C’est toujours l’enfance qui succombe »


Jacques Prévert, in « L’enfance »


Há neste mundo uma criança que corre o sério risco de ser condenada a prisão perpétua por um crime que cometeu com onze anos. Isto não se passa no Irão, nem nas províncias nortenhas da Nigéria, nem numa remota fronteira da China, nem em nenhum daqueles outros sítios que a nossa suficiência europeia consideraria como provável para albergar uma barbárie desta magnitude.


Chama-se Jordan Brown, tem agora treze anos, matou a namorada do pai com um tiro de caçadeira, já foi julgada em primeira instância e é norte-americana. E nem sequer de um daqueles estados do “bible belt” povoados de gente dada à bizarria. Vive na Pennsylvania, sítio supostamente civilizado, um dos estados que fundou a união pela mão, entre outros, de Benjamin Franklin.


Pois na Pennsylvania, como em muitos outros estados, um menor de qualquer idade é julgado como um adulto até decisão em contrário de um juiz. A população prisional norte-americana conta actualmente com 2400 condenados a prisão perpétua por homicídios cometidos quando crianças. Com Jordan Brown, em todo caso, onze anos constitui novo recorde. E já enfrentou um primeiro juiz que achou que ele não deveria ser tratado como um menor.


Muitas coisas separam os homens que por esse mundo fora são capazes do mais reles e cruel que a nossa espécie pode. Uns são camponeses miseráveis arrebanhados por senhores da guerra, outros desorientados em demanda do sectarismo que lhes dê um espúrio sentimento de sentido, outros ainda, pelos vistos, formados em leis. O que une então a catana do miliciano “hutu”, a bomba artesanal à cintura do terrorista checheno ou o martelo deste juiz norte-americano? O mesmo ódio inútil. A mesma oportunidade para mostrar quão fundos são os abismos a que podemos chegar. Pergunto-me se este juiz será por acaso pai, se haverá na sua casa de banho um espelho no qual ele se olhe todas as manhãs sem remorso, se terá alguma vez procurado entender o que diz o Novo Testamento da Bíblia que usa na sala de audiências e que provavelmente manuseia ao domingo na sua congregação, engravatado e luzidio.


O rapaz, Jordan Brown, cometeu certamente um acto abominável. Fê-lo com a sua própria caçadeira, um modelo concebido especialmente para crianças. Pois. Ponham armas nas mãos das crianças e programas da Fox nas suas cabeças e as coisas são capazes de acontecer. O que Jordan Brown fez foi, repito, horrível, mas uma criança de onze anos não tem a mesma percepção de culpa e de consequência que um adulto. Não sei se a fronteira se encontra nos dezasseis ou nos dezassete ou nos dezoito anos. Nos onze não passa de certeza. Se a sociedade condenar esta criança a prisão perpétua puxa o gatilho uma segunda vez e perde a segunda ocasião de que dispôs.


Nietzsche escreveu que a insanidade é rara no indivíduo, mas a norma nas sociedades ou nos países. Ao olhar para este caso, só lhe posso dar razão. Uma sociedade que prende para a vida uma criança de onze anos só pode ser constituída por atrasados mentais profundos, naquele que considero ser o mais genuíno sentido destas palavras e que se aplica não aos que por deficiência têm limitações mas aos que, podendo evitá-lo, escolhem a via da mais confrangedora estupidez, seja pela prática ou pelo silêncio. A mesma estupidez que levou à sala de tribunal esta criança algemada, pasme-se, nos pulsos e tornozelos. Valentões de merda!


Os fenícios sacrificavam crianças a Baal, por medo deste. Os norte-americanos imolam-nas na ara das suas erróneas concepções de justiça, provavelmente por medo de si próprios. Os Estados Unidos e a Somália são os únicos países que recusaram ratificar a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças (que proíbe penas perpétuas para menores de dezoito anos). Os Estados Unidos e a Somália! Excelente companhia que se devem fazer um ao outro...


Infelizmente, pouco conseguiremos fazer, até porque os Estados Unidos são, pequeno detalhe, uma super-potência. Mas podemos pelo menos contar e fazer com que a vergonha se vá, lentamente, propagando. Quando estiverem com um norte-americano, afectem primeiro ter o conhecimento geográfico médio lá deles – “Estados Unidos, isso fica… Deixa ver…” – para depois arrematarem: “Já sei! É aquele país onde as crianças podem ser condenadas à pena perpétua”. “Shame on them”, com liberalidade!



P.S. Soube deste assunto por uma notícia escrita numa página dezoito de um Público, assinada por uma Susana Almeida Ribeiro. Já seria por si só sintomático de uma certa mentalidade que um assunto desta gravidade surja, discreto, numa décima-oitava página. Dirão: critérios editoriais. Pois a mim parecem-me mais critérios civilizacionais. Mas o que mais me chocou foi o tom acrítico com que o artigo foi escrito. Esta senhora jornalista, se tivesse que reportar os fornos crematórios de Auschwitz, fá-lo-ia certamente como se de um empreendimento industrial se tratasse. Ninguém lhe parece ter explicado que o excesso de objectividade pode-se tornar facilmente numa tomada de posição.


Mas o pior é quando diz: “Os EUA têm, porém, vindo a suavizar as suas políticas. Em 2005 o Supremo Tribunal aboliu a pena de morte para menores de dezoito anos. Em Maio passado, o mesmo tribunal decidiu que os menores não podiam ser condenados a penas perpétuas por outros crimes que não sejam o homicídio”. Suavizar? Será que, se os sudaneses reduzirem a força com que mandam as pedras nas lapidações, ela também vai dizer que os tribunais islâmicos estão a “suavizar” as suas práticas? Santa paciência. Onde leva a capacidade de abaixamento mental!

segunda-feira, janeiro 24, 2011

Exposição fotográfica (XXVIII) - e post nº 200

Este é o ducentésimo "post" deixado aqui no Mataspeak. Para celebrar este número, algumas fotos de gente que faz vida do comércio de rua ou de praça.

Antiguidades, Ribeira de Gaia

Leques na marginal de Torre de la Mar, Andaluzia

Banca de legumes na praça de Porto Covo

"Mojitos" a 5€ o copázio na "Feria de Málaga"

Jóias baratuchas na marginal de Torre de la Mar, Andaluzia

Chapéus de malha em Bruxelas

Mais jóias baratuchas (e um olhar cansado) na marginal de Torre de la Mar, Andaluzia

domingo, janeiro 23, 2011

A importância do dado

O meu filho mais velho vota pela primeira vez hoje. Teve azar. Estreia-se com a eleição mais soporífera de que há memória desde que os tanques do MFA instauraram o actual regime.



O incumbente Cavaco Silva, tal como o incumbente FC Porto, irá ser campeão logo na primeira volta. Os adversários mais directos pouco passaram do meio campo e só conseguiram rematar umas bolas de longe, que o Aníbal, com a experiência de muitos campeonatos, facilmente chutou para canto. Ficámos a saber que terá feito uma permuta fiscalmente manhosa e fomos relembrados (a notícia não era nova) que tomou parte em negócio com gente amiga que entretanto se tornou pária. Não muita massa, mas rendeu bem. Enfim, habilidades que meio país já fez e a outra metade não se importava de fazer. A parte simpática é que lhe vai ser mais difícil doravante dizer que “não sou dessas”, a última frase que costumam soltar antes de passar a sê-lo.


Tal como os adversários do FC Porto se consolam das cacetadas que levam com um despeito ressabiado, insinuando em bicos de pés sobre a corrupção da arbitragem e a falta de nível dos dirigentes nortenhos, os adversários de Cavaco, em vez de jogar à bola, vão-se auto-satisfazendo trocando impressões sobre a “falta de cultura” e o “ar hirto” do homem de Boliqueime. Suponho que será para o lado que o Cavaco dorme melhor.


As referências sobranceiras e classistas de uma certa “esquerda chique” sobre Cavaco sempre me irritaram porque têm um significado muito claro: incomoda a essa gente que o filho de um gasolineiro chegue a Presidente da República. Para essa malta, de que Teresa Villaverde e uma Raquel Freire que se diz cineasta são abetardos exemplos no Público desta sexta, Cavaco é um “de fora do nosso grupo, que somos cultos e relax”. E logo usurpou um poder que não lhe cabe. A esta pseudo-esquerda, de cujo nível cultural desconfio, recomendo algumas leituras sobre a Igualdade e o esforço que alguns despenderam e o sangue que alguns verteram para que ela fosse maior: esta, esta e esta, por exemplo.


O “runner up” Manuel Alegre trocou a frutífera liberdade das eleições anteriores por uma camisa que só tem duas varas, mas varas grandes: os apoios de um Partido Socialista com reserva mental e de um Bloco de Esquerda com reserva mental. Como a intersecção ideológica entre o PS socrático e governante e o BE louçanico e oposicionista se reduz para aí ao casamento homossexual, tema que não chega para tantos dias de campanha, para não melindrar ninguém resta a Alegre disparar contra Cavaco. Por azar, quando o tema do BPN estava a começar a aquecer, apareceu-lhe aquela história do BPP que o baralhou um bocadinho. E a mim também: ainda não percebi onde é que está o cheque. Tem-no ele, a secretária, o BPP, a agência de publicidade? Ainda estará em trânsito no correio? Alguém se atravessa? Se ninguém o quiser eu fico com ele!


O “outsider” Fernando Nobre foi para mim a maior desilusão destas eleições. Não percebeu o básico: ser (e relembrar imparavelmente que se é) boa pessoa não chega para convencer o eleitorado. Algumas ideias para o futuro também convinham. Os ingleses, para derrotar os nazis, elegeram um misógino alcóolico com mau feitio e esqueletos no armário mas que tinha um programa claríssimo: arrebentar com eles. Feito esse serviço, sem qualquer gratidão, elegeram outro diferente logo a seguir à guerra. Ninguém nega e, julgo, todos admiram a obra humanitária de Fernando Nobre. Mas ele que não espere que uma multidão grata pelo seu passado benemérito o leve só por isso até à presidência. Nobre, infelizmente, exibiu uma imagem pálida dos candidatos ditos “oriundos da sociedade civil”, que vai deixar marcas e prejudicar novas aparições nos próximos tempos.


O PCP decidiu desta vez trocar o lado “avô Cantigas” do partido, representado em 2006 por Jerónimo de Sousa, pelo “dark side” de Francisco Lopes que com aquele olhar licantrópico seguramente terá sido formado na distrital da Transilvânia do PC romeno. Com um registo mais próximo do aterrorizador Klaus Kinski que do sedutor Christopher Lee, Francisco Lopes não deverá atrair muitos pescoços para a dupla dentada.


O Defensor Moura… Não me ocorre nada para dizer sobre o Defensor Moura, desculpem lá.


O Coelho da Madeira (Oryctolagus madeirensis) é um castiço que veio provar que a sucessão do Alberto João é possível. Afinal aquilo pega-se e deve haver lá mais assim. Gostei do táxi e do fato a condizer com a cor do táxi. Do carro funerário também.



De resto, a campanha foi o habitual grau zero da política, com arruadas – palavra da moda que rima com burricadas, putos das jotas de bandeirinha, bacalhaus às mãos-cheias, beijocas às velhotas, repórteres explorando os limites mais recônditos da idiotia, debates não debatidos, moderadores imoderados, fuga às questões incómodas e demagogia quanto baste.


Com este cenário, amanhã levarei no bolso um dado e rolá-lo-ei no privado da cabine de voto. Seis candidatos, seis faces do cubo, o dado que decida.

sábado, janeiro 22, 2011

Cromos da minha caderneta (I) – Os bombardeiros

Nos meus dezasseis anos, a cena aventureira em mais alto grau, equivalente a uma missão de exploração à Antártida ou a um serviço de reportagem junto da guerrilha afegã, era uma ida ao dois.

O dois, ou dois mil, ou dois mil e um de seu nome completo, abrigava-se debaixo de uma bancada do autódromo do Estoril e para mim, para nós, no sectarismo próprio dessas idades, era A DISCOTECA ponto. Entrar no dois marcava a passagem à idade adulta. Os judeus têm o “bar mitzvah”, na América Latina celebram a “Quinceañera”, os japoneses ouvem as recomendações dos mais velhos no “seijin shiki”, as meninas de sociedade debutam no baile da especialidade. Eu entrei no dois e tornei-me este belo rapaz, assim, de repente.

Ir ao dois não era coisa fácil. Como qualquer projecto, começava por um licenciamento: havia que convencer a autoridade paterna das vantagens pedagógicas do passeio. Usávamos duas linhas de argumentação principais: a compensatória, que implicava apresentar boas notas na semana anterior e a psico-preventiva, que recorria a argumentos como “só os parolos não vão; eu não quero ser parolo; ficaria deprimido se fosse parolo; por isso deixem-me ir”. Esta última lógica leibniziana nunca colou bem lá em casa. Assim sendo, tive que me socorrer da via compensatória, fazendo pela vida durante a semana. Deste modo oblíquo contribuiu o dois para a minha formação.

A seguir ao licenciamento, passávamos ao financiamento. O objectivo consistia em financiar o projecto de ir ao dois mil e um só com capitais alheios, sem recurso ao nosso balanço – o qual andava sempre a roçar a falência técnica. Aprendi mais tarde que a isto se chamava um “project finance”. Só que neste caso a entidade financiadora coincidia com a licenciadora, já muito batida neste género de negociações. Tal como ocorre com as receitas fiscais dos governos mais recentes, o dinheiro sacado acabava sempre por ficar muito abaixo do orçamento previsto, obrigando à contingência de um rigoroso controlo de custos (como veremos), quando não ao impopular recurso a capitais próprios.

Reunidas as condições, vestidas as calças de ganga rasgadas no joelho e calçados os ténis Adidas (a marca das três riscas), eu apanhava o 15 até um tasco infecto na Rua do Alecrim onde, juntamente com o resto da malta, podíamos subir a alcoolémia a preços baratos. Dali descíamos em bando ao Cais do Sodré, onde o comboio nos esperava de portas abertas para nos conduzir em alegre pagode até ao Estoril. Aí, com algum jeito convencíamos um taxista a levar-nos em grupos de quatro até ao parque do autódromo.

A porta do dois estava barrada por um velho de cabelos grisalhos penteados com brilhantina, volumoso sem ser um Tarzan, alto sem ser um poste, severo sem ser antipático. De nome Sanches, era o porteiro. O Sanches detinha um poder de vida ou de morte sobre a nossa ida ao dois. Com um olhar e um gesto de mão, entrávamos. Com um pedido para ver o B.I., ficávamos fora. A passagem pelo porteiro era a provação final. No momento em que, na romaria da fila de entrada, nos aproximávamos do Sanches, sentíamos um temor reverencial. Para me fazer mais velho, esticava a coluna vertebral, estufava o peito, arvorava o meu ar mais imbecil, que eu tinha por sério. Com o tempo conclui que os patrões do Sanches queriam a casa cheia, e que o Sanches só não nos deixaria entrar se antevisse que podia haver fiscalização ou rusga. E com mais outro tempo o bilhete de identidade rodou para os dezoito e pude passar descontraído e sobranceiro por um Sanches que me parecia mais pequeno e menos poderoso.

Os bilhetes do dois permitiam, se bem me recordo, duas cervejas ou uma bebida, normalmente umas azurrapadas vodkas com laranja ou uns melosos runs com coca-cola. As jolas permitiam uma gestão mais criteriosa da liquidez – vide controlo de custos, parágrafo supra. A pista vibrava com o melhor rock, as luzes reflectiam nas gigantescas semi-esferas de espelhos. Dançava-se até às quatro da manhã, o limite à época para qualquer governo civil.

O regresso fazia-se a pé. Mais controlo de custos. Cinco quilómetros e meio, medidos hoje no Google Maps. De caminho recontávamos a noite que passara, discutíamos os amores que não duraram e forjávamos as amizades que continuam imperturbáveis. Chegávamos à estação do Estoril pelas cinco e meia, para o primeiro trem. Secos, se não chovesse. Ensopados, se chovesse. Estoirados mas eufóricos, com qualquer tempo. No Cais do Sodré, o primeiro autocarro que subisse a colina acartava com o nosso cansaço pelo preço das nossas últimas moedas. Deitávamo-nos às sete para uma santa manhã de um sono comatoso.


Noites memoráveis e memoradas muitas. Recordo uma ida ao dois mil precedida de jantar em Lisboa. Eu aprumara-me porque levava comigo uma menina chamada M em relação à qual eu nutria excelentes mas desonestas intenções. No restaurante, já sentado, vejo passar pela mão de um empregado uma sopa alentejana de muito boa pinta. Eu adoro sopa alentejana. Que fazer? A sopinha recendia, mas um prato de alho e coentro àquela hora iria reduzir dramaticamente as minhas hipóteses de sucesso junto da M. Não trouxera escova e pasta de dentes e ir ao hospital para uma lavagem de estômago não me parecia praticável. Que se lixe, pensei: no final, a gula falou mais alto e arrebentei com uma pratada de sopa alentejana. No caminho até ao dois tentei nunca virar a cara para a M e quando falava fazia-o de boca quase cerrada, o que me dava um ar ventríloquo e certamente pateta. A noite não começava bem. Mas mantinha uma esperança secreta que até ao Estoril o pifo se dissipasse, coisa que claro não aconteceu. O dois mil estava relativamente vazio e ficámos numa mesa no recesso que havia ao fundo do lado esquerdo. E lembro que no final consegui levar a minha avante, à custa de algum álcool, muito paleio e uma insistência que possivelmente roçou a violação. Roubei uns beijos à M que lhe devem ter sabido a açorda de coentrada, coitada. Claro que na segunda-feira, quando fui buscar a M à António Arroio e lhe peguei na mão, levei um par de patins que até desci a Alameda com eles.

Outra viva na lembrança passou-se no parque automóvel, ao baixo da escadaria de acesso, ao fim da noite. Já alguns de nós tinham carta de condução e carro do pai. Eu estava no banco de trás do carro do S, que pusera o motor a trabalhar, quando o F lhe pediu para abrir o vidro. Vinha tirar desforço de algo que se passara lá dentro, o que ocorria muitas vezes entre eles. O S baixou o vidro e a conversa foi azedando, num tom galaró. O F já discutia com a cabeça dentro do carro, encostada à cara do S. A dado momento o F meteu a mão para dentro da janela, para agarrar os colarinhos ao S, que decidiu nesse momento que melhor fazia em arrancar com o carro a toda a velocidade. Sabem aqueles desenhos animados em que o gato Silvestre, para escapar a um míssil, encolhe a cabeça para dentro do corpo? Pois foi assim que se passou. Eu quase juro que vi, naquela décima de segundo em que o S acelerou e desembraiou, a cabeça do F a recolher, penetrando a caixa torácica até ao diafragma, o coração e os pulmões em rebuliço perante a visita inesperada. Facto foi que o carro arrancou e o F contra toda a probabilidade não foi decapitado. E o S lá seguiu ao volante, a gola amarrotada e o orgulho vincado, rumo à Marginal.

No momento em que entrei pela primeira vez no dois mil e um estava a tocar o “There’s a moon in the sky (called the Moon)” dos B-52s. Muitas vezes injustamente considerada uma banda menor, os B-52s criaram um pop alegre, frenético e inovador, cheio de “non sense”, próprio para festa e para dança. O seu som é emblemático de uma época, mas ouvidos passados trinta anos a guitarra de Ricky Wilson, a batida de Keith Strickland e o “guy vs. gals” de Fred Schneider, Cindy Wilson e Kate Pierson ainda soam frescos que nem uma alface canora. Do seu primeiro álbum, o da esplêndida capa amarela, oiçam uma das minhas favoritas, “Rock Lobster”, sobre uma festa de praia em que acaba tudo meio apanhado. Em memória do dois mil e um.



(O primeiro vídeo que aqui pus deixou de funcionar porque o Youtube recebeu queixas de violação de direitos de autor. Este é um pouco mais "creepy", mas até tem melhor qualidade de som e imagem.)

domingo, janeiro 16, 2011

Exposição fotográfica (XXVII)

Burgos, 12 para 13 de Janeiro de 2011

Museu da Evolução Humana


Adro da catedral

O peregrino de Santiago

Rua de Santa Agueda


Telhados de Santa Agueda


Porta de San Martin

Praça Maior

Lições do pleistoceno


“Love hides in the molecular structure”
The Doors, in “Love hides”


No início do século passado, a construção de uma via-férrea de serviço a uma mina rasgou a direito pelo meio de uma colina em Atapuerca, local ermo nos arredores da cidade de Burgos. A “trinchera del ferrocarril”, como é hoje conhecida, seccionou o maciço cárstico, zona de rocha calcária onde naturalmente se formam cavernas, poços e outros ocos, e revelou algumas destas formações. Tal permitiu que se encontrassem em quantidade vestígios animais e humanos muito antigos. Nos últimos trinta anos, o sítio tornou-se um dos maiores centros mundiais de arqueologia paleolítica, tendo-se nele achado cerca de quatro quintos dos vestígios humanos até agora descobertos no planeta.

Estive esta semana num encontro de empresa em Burgos, cidade “muito espanhola”, como eles lá dizem, onde Franco montou quartel-general no início da Guerra Civil e os ossos do Cid campeador repousam num esconso da catedral. A “parte turística” do ajuntamento foi uma visita aos achados pré-históricos. Fazia muito frio e o manto de nevoeiro, que na cidade envolvia com charme as torres das igrejas e as arcadas da Praça Maior, convidando ao passeio, transformava-se no descampado de Atapuerca em final de tarde num banho húmido e gélido, que não apelava a sair do autocarro para dentro de uma garganta sombria. Ainda por cima para ver pedras.

Mas lá fomos, para nossa sorte. Recebeu-nos o Doutor David Canales, um jovem doutorado em arqueologia, que segundo nos explicou passa as manhãs a descascar o metro cúbico de calcário que lhe está atribuído e as tardes no laboratório a lavar pedrinhas e ossinhos e a cruzar bases de dados. Como já aqui o disse, não tenho particular afecto por partículas doutorais e outras exibições de peneira. Mas neste caso apeteceu-me usar o “Doutor” por uma razão muito simples: porque é o que está certo fazer-se.

Canales tinha para nos mostrar apenas umas paredes barrentas com uns papelitos numerados presos aqui e ali. Poderá pois surpreender que tenha mantido cinquenta pessoas suspensas hora e meia do seu saber, do seu humor, da sua vivacidade, todas esquecendo a temperatura que caía e a noite que se aproximava. Um professor nato, mesmo que nunca tenha subido ao estrado. Pelo fio da sua voz fomos conduzidos até há cinquenta, cem, quinhentos mil ano atrás, e vimos um mundo austero, onde se cruzavam ursos e tigres de dente de sabre com homens, mulheres e crianças que procuravam o seu caminho. Mostrava-nos um biface, uma pedra talhada de ambos os lados e com arestas diversas e, com movimentos bruscos sobre o seu corpo, como aquela ferramenta poderia ser usada para decepar um membro, para raspar um osso para retirar carne, para esmagar sementes, para partir a tromba ao próximo. “O canivete suíço do paleolítico!”, concluía, “não ter um na altura era como não ter hoje iPod”.

Tratou de nos tirar alguma ideia feitas, como a originada por aquela imagem da evolução em que os hominídeos se vão sucessivamente erguendo até ao “homo sapiens”. Abriu uma mala, retirou dois crânios, um do “homem de Heidelberg”, outro de um homem moderno. Deve ser giro ir trabalhar com uns crânios na bagagem. Mostrou-nos o furo de inserção da coluna: exactamente no mesmo sítio. “Os quadrúpedes têm este furo na parte de trás do crânio, os gorilas um pouco mais abaixo. Este, o de Heidelberg, tem o furo na base porque andava tão de pé como nós”. Ou como a de que o homem descende do macaco: “Temos antepassados comuns, dos quais divergimos. Somos irmãos dos chimpanzés, primos dos gorilas, primos afastados dos orangotangos”. Às vezes parece que não tão afastados, pensei eu.

Para estes cientistas, há três características que marcam e justificam fortemente o caminho percorrido pelos nossos antepassados: o bipedalismo, que libertou as mãos e facilitou o desenvolvimento do uso de ferramentas; o carnivorismo, que permitiu alimentar as necessidades de energia de um cérebro sucessivamente maior e mais potente; e a socialização que maximizou as probabilidades de sobrevivência de seres fisicamente fracos numa envolvente extraordinariamente variável e hostil. Não consigo deixar de sorrir ao pensar nos vegetarianos que conheço e que, com aquele desdém chique pelos atrasados culturais que comem bifes, acham que recuperam a sua humanidade com saladas e arroz por grosso. Afinal, o homem saiu mesmo estruturalmente carnívoro. Sem carne crua, ainda estaríamos com cento e tal centímetros cúbicos de caixa craniana, a fugir à frente dos predadores, em vez dos confortáveis 1300/1400 c.c. actuais, que servem para fugir aos credores. É tão diferente como equilibrar-se numa Piaggio 125 ou pilotar uma Suzuki Hayabusa GSX1300R – a mota do verdadeiro carnívoro.

Mas sobre o que realmente interessa na humanidade, tivemos mais e melhor. Neste local descobriu-se um crânio completo de “homo heidelbergensis”. Os arqueólogos puseram-lhe catitamente o nome de Miguelón, em homenagem ao ciclista Miguel Indurain, na altura ás do pedal. Sabe-se que o Miguelón levou violentamente na fronha, por um oponente que era destro, pois apresenta várias pancadas do lado esquerdo do crânio. Uma delas partiu-lhe um dente e provocou-lhe um abcesso (que ficou marcado no osso) e posteriormente a morte por septicemia. Este processo demorou algum tempo. O Miguelón estava todo partido, completamente inoperacional, mas não morreu de fome. Alguém tratou dele. Alguém foi buscar comida para ele e não foi ao Pingo Doce. Alguém arriscou a vida por um moribundo, centenas de milhares de anos antes de Kant escrever sobre imperativos categóricos. Repetindo a conclusão do Doutor David Canales: “O que se passou nesta caverna? Amizade? Amor? Não sei. Os vossos mil e quatrocentos centímetros cúbicos de caixa craniana que respondam”.

Outro achado notável foi o de uma criança – a Benjamina, apesar de não se saber se rapaz ou rapariga – que apresentava uma craniossinostose, uma união prematura dos ossos do crânio, que neste caso seria pré-natal. Esta criança nasceu muito provavelmente com deficiências psicomotoras graves. Apesar delas, morreu com mais de uma década de idade, talvez próximo de ser adulta. Ou seja, mau grado ela ser um fardo para o grupo, foi tratada e alimentada e desenvolveu-se durante anos. Teve mais sorte do que se tivesse nascido numa família norte-americana sem seguro de saúde.

Em Atapuerca os investigadores não descobrem só o sublime. Ainda não chegaram ao ponto de encontrar os maxilares vorazes de um tipo da banca de investimento, mas vão-se deparando com a morte violenta, o ódio ao outro, os primeiros vestígios de canibalismo. Apesar disto, ao sair da garganta estreita da trincheira, não pude impedir-me de pensar no exemplo do Miguelón e da Benjamina e dos que incógnita e carinhosamente deles trataram. Macacos? Macacos somos nós.