Os recentes dissabores do nosso primeiro-ministro com as investigações do jornal Público, que o catapultaram sucessivamente de engenheiro para licenciado em engenharia e para turbo-licenciado e previsivelmente para bacharel, suscitam algumas reflexões sobre uma das imagens de marca da cagança nacional: o uso da partícula.
Conta-se que uma vez um ministério português remeteu para Inglaterra uma lista de pessoas, portuguesas, que iriam estar presentes numa reunião em Londres. Todos os nomes tinham um “Dr.” à frente: o Dr. Santos, a Dra. Alzira, o Dr. Peixoto e assim até ao fim… Ao receber a lista, os ingleses telefonaram a perguntar se não haveria engano no envio, já que a lista só continha médicos.
No Reino Unido, usa “Dr.” quem praticar medicina, profissão especial que herdou aquela veneração temerosa que nas sociedades primitivas se tributava aos que manipulavam o mistério e possuíam poder sobre a vida e sobre a morte: o feiticeiro, o mágico, o“shaman”. Ou então, no meio académico, aos doutores em filosofia, qualquer que ela seja, que provaram ser tão doutos como os seus pares. Todos os outros são “Mr.”, se merecerem esse respeito, ou “Sir”, se a rainha por feitos lhes conceder tal graça. Percebe-se pois a confusão dos britânicos quando lhes mandam de Lisboa o Dr. Santos para discutir a harmonização das leis fiscais ou a cooperação judiciária.
Por cá, qualquer jerico que se forme na Universidade de Lisboa em gestão de barracas de praia corre nesse mesmo dia, que nem um foguete, até à sua agência bancária para mandar pôr no cartão de crédito um “Dr.” diante do epíteto que os paizinhos lhe deram. Quem não tem “Dr.” ou “Eng.” ou qualquer outra partícula de duas ou três letras, para pendurar à frente do patrónimo, sente-se inferiorizado, como se largado nu no Rossio à hora de ponta. Tão enraizado complexo de inferioridade suscita comportamentos entre o curioso e o aberrante.
Irritam-me, por exemplo, aquelas secretárias que me perguntam, quando eu, ao telefone, peço para falar com alguém e dou o meu nome: “Dr.” ou “Eng.”? Fico com vontade de responder: bate-chapas (“Bc.”) ou proxeneta (“Px.”). Já para não falar das luminárias que se introduzem com um “daqui fala o Dr. Caria Zebedeu”, como se fossem Zebedeu de pai e Dr. Caria de mãe.
As partículas vão subindo e descendo de cotação conforme os tempos e as modas. O “Dr.” tem mantido um valor constante ao longo do tempo, enquanto o “Eng.” se tem valorizado. No início do século XIX, um engenheiro era pouco mais do que um capataz especializado, como podemos ler em Camilo Castelo Branco. Na segunda metade desse século já é um técnico socialmente respeitável, pertencendo a uma burguesia em ascensão, como o Jorge de “O Primo Basílio”, que ganha o suficiente para ter criada mas não o suficiente para que a mulher não o encorne. No século XX, o engenheiro chega a ministro com Duarte Pacheco e a primeiro-ministro com Guterres (mas pelos vistos não com Sócrates). Já “Arq.” tem cotado sempre em valores baixinhos. Para prová-lo, basta fazer notar que não conseguimos conceber, sem rir, a secretária acima referida a perguntar-nos: “Dr.”, “Eng.” ou “Arq.”?
Um caso curioso ocorre com os professores do ensino secundário. A massificação deste grau de ensino levou muitos “Dr.” a ministrar aulas nos liceus, mas ao mesmo tempo a ver o seu estatuto social cada vez mais degradado. O título de “Prof.” acabou reservado aos docentes universitários, com o significado de “ganham mal mas não se importam porque são uns crânios respeitáveis”, enquanto os docentes liceais perderam o “Dr.” e passaram a “sôtores”, o que quer dizer “não têm onde cair mortos e por isso vegetam a aturar selvagens a duzentos quilómetros de casa”. “Sôtor” anda pelas catacumbas da escala social, algures entre o varredor e o merceeiro de bairro. O que explica, em parte, o estado do ensino em Portugal.
Uma partícula que vale zero na bolsa de valores é o “Lic.”, por ironia aquilo que quase todos os “Drs.” de facto são. As universidades debitam essencialmente licenciados, a quem foi dada licença para arrotar postas de pescada sobre um assunto específico que pode ser tão extraordinariamente relevante como gestão de espaços verdes – não se riam, existe esta licenciatura no politécnico de Portalegre. Uma licença destas não confere só por si qualquer sapiência, logo quem a obtém não é douto e por consequência não é doutor. Conscientes disto, os licenciados fogem do “Lic.” como o vampiro foge do alho e esta partícula apenas pode ser vista, em letra miúda, nas nomeações e louvores impressos no Diário da República.
Existem objectos que atraem e outros que repelem as partículas. Os fatos e gravatas têm fortes poderes magnéticos. Se for tomar café de fato escuro e gravata, quase de certeza que o empregado de mesa me vai tratar por “Dr.”. Este fenómeno nota-se bem nos debates televisivos, quando as comentadoras tratam o Cavaco por “Prof.” e o Louçã pelo nome, só porque vai de camisa aberta no pescoço, apesar deste ser tão professor como o outro e até ter uma tese de doutoramento mais interessante. O futebol, ao contrário, tende a afastar o uso da partícula. Já alguma vez ouviram falar do Dr. José Mourinho? Sim, o “special one”! Como é treinador de futebol, os jornalistas partem logo do princípio que tem o 10º ano incompleto.
O meio público português pulula de políticos e aparentados que se vêem de repente sob as luzes da ribalta sem quaisquer habilitações que justifiquem o uso da partícula. Como por regra são gente de personalidade mindinha, tal coisa envergonha-os, levando-os a adoptar uma de três tácticas. Ou tiram aos quarenta e tal anos um curso tardio, que não seja complicado, numa daquelas universidades fáceis (algumas universidades, como algumas mulheres, podem ser fáceis, se se acertar o preço certo). Ou inventam um título que não têm e usam-no com a maior desfaçatez na esperança que ninguém se dê ao trabalho de investigar. Ou agarram-se que nem lapas à primeira coisa que lhes aparecer que seja justaponível ao nome. Enquadram-se nesta última categoria os majores sem exército nem batalhas e os comendadores, que receberam uma comenda, provavelmente por terem satisfeito alguma encomenda. Quando alguém usa o título de comendador é porque, coitadinho, quer muito e não tem mesmo mais nadinha para pôr.
A necessidade, o uso e o abuso da partícula são ícones do subdesenvolvimento português. Relacionam-se com a veneração salazarenta pela autoridade, com a primazia que atribuímos à aparência sobre a substância, com a ideia mirífica que reina na cabeça da burguesia pequena que se os filhos forem “Dr.” estarão safos sem precisar de se esforçar. Com esta ideia se destruiu o ensino técnico em Portugal e se criou mercado para as “universidades” privadas, que sugaram poupanças de uma vida sem hipóteses de retorno, fazendo nascer o fenómeno recente do desemprego qualificado.
Este é um campo onde temos muito a aprender com os nossos vizinhos. Em Espanha, quando alguém merece consideração é “Don”, e chega. “Don”, pela sua carga histórica e pelo seu conteúdo de hombridade, honra mais do que qualquer “Dr.”. “Don” não é partícula, é responsabilidade. No dia em que, em Portugal, os “Dr.” e os “Eng.” forem irrelevantes e os “Dom” forem merecidos, o défice estará provavelmente equilibrado e o crescimento do PIB ultrapassará a média da União Europeia.
6 comentários:
Para começar, os meus parabéns!!!
Consegui perceber absolutamente tudo o que escreveste. Não sei se isso é bom ou mau (para ti) para mim é óptimo...
Depois, deixa-me dizer-te que, mesmo em Inglaterra, há pelo menos alguns médicos que, nem eles, usam o Dr.
Fiquei aliás bastante espantada quando, tendo marcado uma consulta com um, a secretária me disse que o Mr. não sei das quantas já me ia atender. De repente fiquei na dúvida se teria de facto marcado consulta com um médico ou se me teria enganado... LOL
Quanto a nós, portugueses, devo dizer que o meu pai (não tendo nenhum "título") foi tudo e mais alguma coisa, era à vontade do freguês, Dr. Eng., whatever... chegaste a perceber como se escolhe o que chamar? Deve ser consoante as circunstancias... De facto, quando estava internado era sempre "Sr. Doutor", ... LOL
Bom post. Gostei.
Tens toda a razão meu caro Carlos.
É terrível a bajulação que se presta às pessoas, como na seguinte introdução de um trabalho académico:
(...)por outro, ao Exmo.
Senhor Eng.º Carlos Mata, que ao acolher as minhas proposições, me abriu as portas da TA, sendo-me assim facultada a informação indispensável. (...)"
Terrível, terrível...
Ei, ei!!!!!!!!!!!!!!!!
Censura??????????!!!!!!
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Cuméqué?
Cristina, esse comment apagado era do (Dr.? Eng.? Arq.? Bc.? Px.?) Socrates it self! não convinha deixar... Sobretudo que começava por "Caro Dr. Carlos Mata..."
Estás em cheio mana...
LOLOLOLOLOLOLOLOLOL
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